Kelly Cyclone: da fama ao assassinato
Tráfico Morte da primeira digital influencer baiana completa dez anos ainda sem solução
O ano era 2010 e a banda A Bronkka despontava como principal atração do festival Pagodão Elétrico. Durante o show, o vocalista Igor Kannário avistou uma moça em meio à multidão e a convocou para subir ao palco, levando o público ao delírio. A jovem não era cantora ou atriz, mas todo mundo a conhecia. Afinal, sua fama já corria com a força de um fenômeno da natureza, um ciclone.
No palco, a jovem Kelly Sales Silva, com 21 anos na época, pegou o microfone e puxou a música que homenageava a marca de roupas que ela levava no nome. “Cyclone não é marca de ladrão, é a moda do gueto”, diz a primeira estrofe daquele hit que se transformou em hino nos becos e vielas de Salvador.
Naquele dia e naquele palco montado no coração de Cajazeiras se encontravam dois ícones, que por caminhos diversos, adquiriram status de realeza entre jovens das periferias soteropolitanas: o “Príncipe do Guetto” e a “Dama do Pó”. Enquanto um dava voz à favela em seus versos, a outra representava o estilo e o grito de liberdade de um povo marginalizado antes de ser vítima de um feminicídio há 10 anos, no dia 18 de julho de 2011.
FIM DA DOÇURA
Kelly Cyclone, ou Kelly Doçura, é até hoje lembrada por suas tatuagens, estilo ousado e, principalmente, envolvimento com traficantes. No entanto, para ela, tudo não passou de uma trágica história de amor sem final feliz.
Enquanto no Orkut ela exibia um arsenal de armas, a casa dela era recheada de ursinhos de pelúcia. Dentro da casa dos Sales, a pequena Kelly era considerada um “bicho do mato”. O ponto de inflexão que fez Kelly mudar da água pro vinho é um grande debate entre conhecidos.
Na verdade, há uma consenso: falta de oportunidade. Antes mesmo de concluir os estudos, ela distribuía currículos por empresas de Salvador e Lauro de Freitas. Os recrutadores apontavam qualidade como desenvoltura, boa fluência verbal e dinamismo. Mesmo assim, nenhuma porta se abriu.
Sem oportunidade, Kelly Cyclone venceu a luta com Kelly Sales. O bicho do mato criou asas e agora era visto constantemente em festas de pagode regadas a álcool e drogas. Foi num desses rolés que Kelly conheceu e se apaixonou pelo percussionista Bombado Doçura, da banda Saiddy Bamba. Além do amor e da fama incipiente, o músico emprestou o apelido para a amada, agora conhecida como Kelly Doçura.
O namoro entre os dois, no entanto, durou pouco. Solteira, abandonou o sobrenome do ex. Inspirada em sua marca de roupas favoritas, a patroa adotou um novo vulgo: Kelly Cyclone.
Kelly já era famosa em seu ciclo social, mas ela só se tornou conhecida em toda Salvador no dia 25 de fevereiro de 2010, após uma festa de aniversário. No cardápio, picanha, cerveja, som alto e muita, muita cocaína naquela que ficou conhecida como “Festa do Pó”. Policiais invadiram o local onde ocorria a celebração, botando um ponto final na farra. O resultado da esbórnia: 44 detidos, incluindo 13 menores.
Apesar do alto número de detenções, uma das convidadas virou o centro das atenções: uma bela e tatuada jovem que atendia pelo nome de Kelly Cyclone. Após a festa, ela começou a estampar as capas de jornais e ser presença assídua em programas policiais como o Se Liga Bocão e o Na Mira. Todo mundo queria saber quem era essa tal “patroa do tráfico” que fazia e acontecia em Salvador.
Importante ressaltar que ela sempre negou qualquer envolvimento com atividades criminosas. A polícia a investigou, mas também não obteve nenhuma prova.
A fama ultrapassou os limites da televisão e ganhou eco nas redes sociais. Na época ainda nem existia o termo “digital influencer”, mas Kelly inaugurou a profissão em Salvador. No Orkut haviam comunidades com milhares de membros feitas em homenagem a ela. No YouTube, os vídeos dela nas festas de pagode e nos programas televisivos atingiam milhões de visualizações numa época em que a internet ainda não tinha se popularizado.
A marca que ela estampava no nome batia recordes de venda e a camisa da Argentina, uma de suas favoritas, virou febre em Salvador. “Na descida do Shopping Piedade, o povo vendia camisa da Argentina dizendo 'essa é do doce, da doçura. de Kelly Cyclone'. Não vendiam camisa de Bahia e Vitória, só de Kelly”, lembra Jorge Gauthier, chefe de reportagem do CORREIO e um dos repórteres que cobriu a morte dela.
A fama era tanta que Kelly pretendia se candidatar a vereadora em 2012. Sua principal bandeira? O combate às drogas. As aspirações políticas dela, no entanto, foram interrompidas no dia 18 de julho de 2011, quando foi vítima de um feminicídio em Lauro de Freitas, num crime até hoje sem solução.
Salvador parou. Nas escolas, bares, pontos de ônibus e jornais locais só se falava do fim trágico da Musa do Pó. Nas redes sociais, cerca de 600 comunidades, com milhares de membros, falavam de um luto coletivo. Um vídeo publicado logo após a morte dela atingiu 50 mil visualizações em dois dias - atualmente o número se aproxima de um milhão.
O enterro dela foi no dia 19 de julho e reuniu uma multidão no Cemitério de Portão. Centenas de amigos, familiares e fãs se aglomeraram para dar o último adeus em Kelly, que foi enterrada com um boné rosa fluorescente. Durante os dias subsequentes, o túmulo de Kelly foi palco de peregrinação de outros fãs, que lembravam a frase favorita da Dama do Pó: "O mundo não está ameaçado pelas pessoas, mas por aqueles que permitem a maldade.”