Que beco é esse?
Vizinho dos prédios da Vitória, viela quase passa despercebida e é point de bar tradicional na vizinhança
Uma caminhada de um minuto é o suficiente para percorrer, do início ao fim, a Travessa ou Beco do Wilson, um estreito entre os prédios do bairro do Corredor da Vitória que passa despercebido a quem não está atento à paisagem. Cada vez com mais frequência, alguém surge na entrada dele e pergunta: “Aqui é novo?”. Quem está lá dentro responde que não, pelo contrário. Existe vida no beco há, pelo menos, 80 anos.
Entre um mercadinho amarelo e um salão de beleza, a sinalização de que estamos no Beco do Wilson consta numa placa azul: “Travessa Hugo Wilson”. Ao meio-dia, aumenta o fluxo no Beco o vai e vem de trabalhadores de obras, empresas ou órgãos públicos que vão almoçar no Abaixadinho, instalado no endereço desde 1974. Mas, em dias de semana, é só. Aos finais de semana, principalmente nesta fase de flexibilização, o movimento também cresce.
No dia a dia, o Beco é mais frequentado pelos próprios moradores - até porque ele é passagem para lugar nenhum. A rota para a Praia Xangrilá, que existia, foi fechada nos anos 80, com a construção da Mansão Carlos Costa Pinto. Vendedores ambulantes, de pastéis e doces, no entanto, têm o Beco como uma rota. Os becos são, por definição, ruas estreitas e curtas, com residências dos dois lados, que ligam ou não um ponto ao outro.
O Plano de Desenvolvimento Urbano de Salvador (PDDU) tipifica um beco como qualquer outra rua, alameda ou travessa. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano municipal não sabe quantos deles existem na cidade.
No Beco do Wilson, são 16 casas grudadas umas às outras, pintadas e habitadas. Embora sejam tão próximas, são ventiladas. Prestes a começar o verão, a temperatura sobe um pouco e algumas delas deixam as janelas abertas. Há ainda um prédio, com quatro apartamentos, construído nos anos 40.
Até 1975, havia um só banheiro para os moradores do Beco do Wilson, ainda existente. As casas têm um quarto e, na maioria delas, o banheiro e cozinha foram construídos à frente. Só no final da década de 80, a água começou a chegar por canos.
“Lembro que tinha fila para ir ao banheiro, porque só tinha um. Também só tinha um tanque”, recorda Carlos Santos, 69, nascido e criado no Beco, e filho da moradora mais antiga do local Dona Benzinha, 101, que mudou de endereço somente na pandemia, para ficar com uma filha.
Mesmo com moradores que vivem ali há quase 80 anos, como Dona Benzinha, o Beco não pertence a nenhum deles, mas aos herdeiros de dois espanhóis. Todos moram de aluguel, que custa entre R$ 552 e R$ 1,4 mil (os apartamentos), o que os deixam incertos sobre o amanhã.
na verdade, seja Hugh Wilson, engenheiro inglês que morava no século 19 em um palacete no bairro do Campo Grande, com gradis importados da Inglaterra. A última consoante foi abrasileirada e incorporada como vogal.
Os próprios moradores da travessa e os atuais moradores desconhecem a história por trás do nome da travessa. Essa versão é apresentada pelo historiador Rafael Dantas.
Antes da consolidação de um padrão elitizante nessa região central da cidade, em meados do século 20, os becos “eram onde as pessoas se encontravam, dinamizavam suas vidas no espaço urbano”, diz Dantas. “O que é um beco? Uma ligação entre caminhos. E eram importantíssimos porque eram lugares de passagem. Salvador cresce nesses becos”, conta.
Os becos foram paulatinamente substituídos conforme o padrão higienista da época. “Os becos vão embora e, nesse caso do Beco do Wilson, temos um foco de resistência”, acredita Dantas. Em Salvador, os becos residenciais do centro sobreviveram principalmente entre regiões como o Politeama, Garcia, Carlos Gomes, Sodré e a Baixa dos Sapateiros.
Hoje, eles resistem “desde que não haja grandes obras por perto”, afirma a doutora em Antropologia e professora da Universidade Federal da Bahia Urpi Montoya. Na Baixa do Sapateiros, região que ela estudou, quatro desapareceram com a construção de um estacionamento no Pelourinho.
Lá, ela descobriu ao menos dez becos, criados há mais de um século, ou mais recentemente, na década de 60. Mas, resistem de forma pouco visível. “Como suas formas são pouco visíveis, não sabemos sequer que elas existem”.
Os becos são como corredores onde casinhas se erguem pelas beiradas, muito próximas umas das outras, e, em regiões como a Baixa dos Sapateiros, se tornaram uma opção para uma massa de trabalhadores que precisavam de adaptação preferencialmente próxima dos núcleos urbanos.
“Esta demanda foi lucrativamente atendida por pequenos proprietários que tinham terrenos nos quais podiam construir uma série de casinhas para serem alugadas. O custo era barateado colocando um único banheiro para todas elas”, explica Urpi. Era justamente o que ocorria no Beco do Wilson.
O SAMBA
Às 11h, começam a chegar os primeiros frequentadores do Abaixadinho, na entrada do Beco do Wilson. Fundado em 1974 pelo marido falecido de Maria Luiza Lima, 73, conhecida como Dona Lita, o bar traz samba às tardes de sábado do beco.