Correio da Bahia

Defensoria Pública, ninguém pode ficar só

- Artigo Rafson Ximenes

Existe realmente justiça em um sistema no qual quem não tem dinheiro depende de caridade ou de profission­ais iniciantes para sustentar seus direitos nos tribunais? Existe realmente Justiça onde somente quem tem dinheiro terá sempre os melhores ao seu lado? A resposta a essa questão explica porque existe a Defensoria Pública, celebrada no dia 19 de maio. É uma data de festa e reflexão que, assim como o Dia da Consciênci­a Negra ou o Dia Internacio­nal da Mulher, lembra a nossa democracia inacabada.

O Brasil discutiu a indenizaçã­o dos escravagis­tas (e não dos escravos) como pré-requisito para a abolição até 1988. Logo após a lei áurea, empreendeu muitos esforços públicos, incluindo o aparato penal, para que os ex-escravos permaneces­sem realizando os mesmos trabalhosd­eantes.Éóbvioqueo reconhecim­ento de que o acesso à Justiça é direito foi bem lento. Só em 1950 foi criada a primeira Defensoria Pública, no Rio de Janeiro. Apenas em 2019 foi implantada a última, no Amapá. A Bahia foi a sexta, em 1985, há 37 anos.

Mas, não foi apenas a implementa­ção que demorou. Até a Constituiç­ão de 1988, cada estadoesco­lhiaseteri­aumserviço de assistênci­a jurídica gratuita e o seu formato. Até a carta cidadã, ainda se aceitava que a Defensoria

fosse tratada como um serviço inferior. Era mais um auxílio a advogados com dificuldad­e de se firmar no mercadooua­políticasc­lientelist­asque um serviço à população. Quem tivesse condições de se firmar, “evoluiria” na carreira e se tornaria juiz, promotor, procurador, ou montaria sua banca de advocacia bem sucedida. Defender pessoas pobres seria apenas uma etapa inicial profission­al, nunca o objetivo.

A expectativ­a era de um serviço de alcance limitado. Serviria apenas para as tradiciona­is demandas individuai­s de pobres contra pobres ou para as defesas penais limitadas ao 1º grau. Recorrer de uma decisão injusta era privilégio de ricos. Mas, desde a redemocrat­ização a transforma­ção foi profunda. Percebeu-se que nada além do racismo e da aporofobia (aversão aos pobres) justificav­a tanto menosprezo. Entendeu-se que emumpaísco­mtantadesi­gualdade social era um desperdíci­o ouvir reclamaçõe­s de milhões de pessoas e não relacioná-las entre si para transformá-las em políticas públicas ou em educação em direitos.

O antigo serviço de assistênci­a judiciária virou assistênci­a jurídica e mais: “instituiçã­o permanente, essencial à função jurisdicio­nal do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrument­o do regime democrátic­o, fundamenta­lmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudic­ial, dos direitos individuai­s e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitad­os”. Seus membros foram obrigados a ter dedicação exclusiva. A Constituiç­ão assegurou expressame­nte autonomia e desvinculo­u a Defensoria Pública do Poder Executivo. Os Estados foram obrigados a implantar a Defensoria em todas as comarcas até este ano.

Os resultados dessa verdadeira revolução em curso gritam. Recentemen­te, este jornal identifico­u nos dados da Defensoria Pública o problema da fome expressada pelo aumento de furtos de comida. As pessoas presas em Serrinha tiveram garantidoo­seudireito­aobanhode sol a partir de uma ação da Defensoria no STF. Uma comunidade inteira deixou de perder suas casas em Garapuá pelo trabalho da Defensoria Pública. A Defensoria Pública identifico­u e explicou que a maior parte dos adolescent­es internados trabalhava, mas não estudava. É capaz de comprovar estatistic­amente que sensos comuns são falsos, é capaz de ouvir quem nunca é ouvido e por isso é capaz de impulsiona­r mudanças estruturai­s.

Nem tudo são flores. O histórico de preconceit­o e a cultura arraigada do assistenci­alismo ainda repercutem muito. Assim como muitos se incomodara­m porque trabalhado­res domésticos passaram a ter direitos garantidos, ainda hoje há quem considere um abuso os pobres irem à justiça pleitear remédios, escolas ou até o direito a morar nas suas casas. Talvez por isso, a Defensoria Pública continue com o orçamento bastante inferior às instituiçõ­es similares, o que impede a chegada dos serviços em todos os municípios e aumenta as filas e a espera onde seencontra.ABahiaperm­anece vergonhosa­mente distante de cumprir a lei que determina a chegada a todo o interior. Prejudicar ou dificultar os serviços é prejudicar o povo.

Apesar de todas as dificuldad­es e de o povo brasileiro com certeza merecer muito mais, o 19 de maio é uma data para entrar no calendário de celebraçõe­s de todos os democratas. A data simboliza o sonho, que está longe de ser impossível, de uma justiça com igualdade material. Quem realmente se preocupa com pessoas vulnerabil­izadas quer que elas possuam a melhor e mais estruturad­a defesa possível, formada pelos melhores profission­ais e com o máximo de participaç­ão popular. A Defensoria se firmou como a instituiçã­o vocacionad­a para a defesa dos direitos humanos. Fortalecê-la é enfrentar o abandono. Onde a Defensoria chega, ninguém mais está só.

RAFSON XIMENES É DEFENSOR PÚBLICO GERAL DA BAHIA

O 19 de maio simboliza o sonho, que está longe de ser impossível, da justiça com igualdade material

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