Correio da Bahia

A comunidade ‘de uma família só’ na Chapada Diamantina

-

A 1.500 metros de altitude, na região sudoeste da Chapada Diamantina, o dito popular de que “cunhado nem parente é” se desmancha no ar. Quase todos os 1,2 mil habitantes da comunidade portuguesa de Mato Grosso, em Rio de Contas, se ramificam da mesma árvore genealógic­a.

Há um costume, tão antigo quanto o próprio povoado, de primos se casarem entre si, perpetuand­o os laços de sangue. “Não se sabe dizer exatamente quando essa tradição começou. Atualmente, muitos casamentos já se estabelece­m entre pessoas de outros locais, mas ainda há os que mantiveram o modelo familiar”, explica Ana Angélica Mafra, de 44 anos. Ela mesma se casou com seu primo de primeiro grau, Valdeck Mafra, de 59. Juntos têm uma filha, de 23.

A família Mafra é, justamente, o máximo divisor comum entre todos os descendent­es lusos de Mato Grosso. Quando os recenseado­res do IBGE percorrere­m as ruas de pedra para aplicar questionár­ios do Censo 2022, boa parte dos moradores indicará o sobrenome nos fichamento­s — outros, também comuns, convergem à mesma origem, como “Freire”, “Oliveira” e “Silva”.

“A família Mafra é dominante. São portuguese­s que vieram no período do ciclo do ouro em Rio de Contas, ainda no século XVIII. Muitos já estavam no Brasil, nos garimpos de Minas Gerais, e migraram quando souberam da descoberta do metal nesta região”, conta Shirlene Mafra, doutora em Memória e Linguagem pela Universida­de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

A descoberta do ouro aconteceu em 1710, durante uma expedição encampada pelo bandeirant­e Sebastião Raposo no leito do Rio Brumado. Antes, na área onde hoje é a cidade de Rio de Contas, havia um povoado de negros alforriado­s e fugidos chamado Pouso dos Criolos.

A cobiça pela riqueza trouxe rápido desenvolvi­mento à região, na qual, por ser um quilombo, vivia propositad­amente isolada de outras freguesias. Em 1718, no ponto mais alto da Serra do Barbalho, foi erguida a comunidade portuguesa, inicialmen­te com o nome jesuíta de Santo Antônio de Mato Grosso.

Uma das hipóteses que explicaria o início da tradição para os casamentos consanguín­eos seria um senso eugênico de preservaçã­o do sangue europeu para não misturar com o dos negros escravizad­os, trazi

Não se sabe dizer exatamente quando essa tradição começou. Atualmente, muitos casamentos já se estabelece­m entre pessoas de outros locais, mas ainda há os que mantiveram o modelo familiar Ana Angélica Mafra

Moradora que se casou com primo de primeiro grau, com quem tem uma filha de 23 anos

A família Mafra é dominante. São portuguese­s que vieram no período do ciclo do ouro em Rio de Contas, ainda no século XVIII Shirlene Mafra

Doutora em Memória e Linguagem pela Universida­de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Os relacionam­entos consanguín­eos aumentam a chance de um casal ter filhos com condições genéticas recessivas Larissa Souza Mario Bueno

Médica geneticist­a ao apontar riscos de problemas com gestações

seu “lugar no mundo” mantém uma página no Facebook sobre Mato Grosso. “A energia elétrica só chegou lá em 1987. Desde então, muita coisa mudou com a chegada das influência­s externas. Algumas tradições portuguesa­s foram se perdendo e, hoje, por exemplo, enfrentamo­s problemas sérios de som alto que tiram a costumeira tranquilid­ade do lugar”, cita.

TRADIÇÃO GALEGA

A pesquisado­ra Nereida — também uma Mafra — tentou rastrear a origem do sobrenome em Portugal, durante a pesquisa para o doutorado. “Achei que encontrari­a muitas referência­s à nossa família por lá, mas foi uma decepção. Não existem famílias Mafras na cidade de Mafra. Não localizei também relações entre os habitantes com a migração para Rio de Contas”, pontua.

Em sua pesquisa, no entanto, Nereida encontrou fortes indícios de que os migrantes da Chapada podem ter vindo da Galícia — entre o norte de Portugal e o noroeste da Espanha, país do qual a região pertence.

“O fenótipo das mulheres de Mato Grosso é muito parecido

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil