Fonte de inspiração
Espelho Personalidades negras falam da importância de Glória Maria ao abrir portas no jornalismo
A palavra referência foi uma das mais usadas para falar de Glória Maria, desde que sua morte foi anunciada. Colegas de profissão e personalidades de várias áreas, sobretudo negros, dimensionaram o quanto a presença da jornalista na emissora mais importante do país - desde os anos de 1970 - foi fundamental para fornecer esse espelho tão importante para a nação. No encerramento do Jornal Nacional, profissionais de todas as redações da Globo no país bateram palmas para ela, em reverência à trajetória de mais de 50 anos de TV.
“Ela foi uma presença fundamental para mim, assim como para outras colegas negras”, disse Maju Coutinho, atual apresentadora do Fantástico. “Referência no telejornalismo brasileiro. Referência para mulheres jornalistas. Referência para negras jornalistas. Referência”, completou a também jornalista Flávia Oliveira, da Globonews.
Maju e Flávia são bons exemplos da abertura de caminhos na televisão para pessoas negras - que Glória Maria desbravou, mesmo sem levantar bandeiras. Por isso, ficava chateada quando era cobrada para se manifestar: “Isso é uma coisa que venho fazendo minha vida inteira, só de ser quem sou, não tem posicionamento maior do que esse”, disse em entrevista ao Roda Viva.
Além de ser a primeira jornalista negra a ter destaque na televisão brasileira, ela foi pioneira também ao se tornar a primeira pessoa no país a usar a Lei Afonso Arinos para denunciar e se proteger contra o racismo. O fato ocorreu nos anos 1970, quando ela foi impedida por um gerente de entrar pela porta da frente de um hotel no Rio de Janeiro para fazer uma entrevista.
“Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode. Eu tenho orgulho de ter sido a primeira pessoa no Brasil a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo, não como crime, mas como contravenção. Eu fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar, chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas ele se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, relatou ao longo de um programa da Globo sobre racimo, em 2020.
Num entrevista para uma transmissão ao vivo no YouTube, Glória avançou sobre o tema e deu o que falar após uma declaração polêmica “Hoje tudo é racismo, tudo é preconceito”, avaliou. Ela usou a experiência pessoal que tem com os colegas de equipe na televisão para exemplificar atos que considera inofensivos. “Eu até hoje na TV tenho meus câmeras antigos, os técnicos que estão comigo há quarenta anos, todos me chamam de neguinha. Eu nunca me ofendi, eu nunca me senti discriminada. Eles me chamam de uma maneira amorosa, carinhosa. É claro que se eles falam ‘ô nega, não sei o quê’ é outra coisa. Então, hoje. Tudo é preconceito”, pontuou.
Ainda assim, disse que era muito difícil explicar para suas filhas o que é o racismo em contextos como o das manifestações nos Estados Unidos e em outros países após a moste de George Floyd, em 2020. “Eu não sou muito otimista, mas eu acredito que um dia todo mundo vai ser visto como igual. Ninguém vai ser discriminado por causa da cor da pele. Tomara que minhas filhas não precisem viver o que a gente, negro, vive hoje”, declarou.
POLÊMICAS
Racismo, feminismo e outros temas tensos sempre atravessaram a trajetória de Glória, conhecida também por sua franqueza. Ela chegou a afirmar que achava os novos padrões morais “basicamente um saco”, criticando também as pessoas que denunciam assédios nos ambientes de trabalho.
“Tudo é assédio e está chato. Eu estou há mais de quarenta anos na televisão, já fui paquerada muitas vezes, mas nunca me senti assediada moralmente. Eu acho que o assédio moral é uma coisa clara, não tem dubiedade. Não tem como você interpretar. O assédio é uma coisa que te fere, é grosseiro, te machuca, te incomoda, te desmoraliza. Agora, a paquera... Pelo amor de Deus”, colocou.
Para ela, era preciso que as pessoas soubessem discernir as coisas. “Nós, mulheres, sabemos fazer bem a diferença de uma paquera para um assédio, para um abuso sexual. Se a gente não tiver a capacidade de ver isso, de observar isso, caramba, por que a gente chegou até aqui? ”, ponderou.
Com espírito livre e namoradeira assumida, Glória afirmou que namorou mais de uma pessoa ao mesmo tempo, que não foi educada para casar e ter filhos e que sempre preferia manter a vida pessoal discreta e longe dos holofotes: “Eu sempre fiz de tudo para me fazer feliz”, resumiu bem ao estilo Glória se ser. E ainda acrescentou que não vinha de um mundo politicamente correto.