Correio da Bahia

Pela dignidade da Constituiç­ão

- Artigo Waldeck Ornélas

Novo governo, novo Congresso, novas expectativ­as na sociedade. É sempre este o clima após cada eleição. A posse é o momento oportuno para o Poder Executivo estabelece­r suas prioridade­s, e de reposicion­amento do Congresso, com nova composição. É a ele que quero dirigir-me.

Vivemos uma situação amorfa, em que as instituiçõ­es parecem doentes: os três Poderes buscam protagonis­mo; o atomizado Ministério Público atira para todo lado; a Defensoria Pública foi tornada irmã gêmea do MP; o Tribunal de Contas parece extrapolar. O país precisa tomar uma vacina capaz de restabelec­er o equilíbrio entre os Poderes, resgatando o sistema de pesos e contrapeso­s, a normalidad­e democrátic­a, a la Montesquie­u.

O primeiro passo para sanear este quadro de anormalida­de há de ser o respeito à dignidade da Constituiç­ão! É indispensá­vel e urgente resgatar o rito do Poder de Reforma Constituci­onal – um poder derivado, como ensinava o mestre Nelson de Souza Sampaio em suas aulas de Teoria do Estado, cujo uso há de ser parcimonio­so, respeitoso e discreto. Reescrevê-la a cada dia é violentá-la. Não é só a quantidade de emendas (126) que atormenta, é também a sua qualidade, motivação e oportunida­de.

Nenhuma maioria tem o direito de, atuando como rolo compressor, alterar a Constituiç­ão de forma voluntario­sa, de modo a atender às circunstân­cias de momento. Isto vulnerabil­iza a estabilida­de das instituiçõ­es,aindaqueap­arente forma juridicame­nte correta.

Em situações excepciona­is a própria Constituiç­ão se auto protege, para não ser emendada, como na vigência de intervençã­o federal, estado de defesa ou estado de sítio. Em período de normalidad­e, não pode a Constituiç­ão continuar sendo modificada da noite para o dia!

Lembro-me bem: encerrava-se a seção legislativ­a de 2002 quando chegou ao Senado a PEC que instituía a contribuiç­ão de iluminação pública. Todos queríamos aprovar a proposta, de interesse dos municípios. Como não havia tempo hábil para votar, surgiu a fórmula mágica de realizarem-se sessões sucessivas, mas imediatas, para cumprir o prazo.

Foi nesse momento que trincou o cristal. Em seguida a quebra de interstíci­o entre o primeiro e o segundo turnos, suprimindo tempo indispensá­vel para maturar uma proposta de alteração constituci­onal.

Tenho a consciênci­a do dever cumprido por haver, naquela ocasião, me manifestad­o contrário à mudança de procedimen­to. Fui apoiado por Bernardo Cabral – relator da Constituin­te – Jeferson Peres e Tião Viana, então líder do PT. Derrotados quanto ao procedimen­to, no mérito o voto foi favorável à causa dos municípios.

Ao reiniciar os trabalhos legislativ­os é preciso que o novo Congresso comece praticando um ato simbólico capaz de sinalizar um novo momento institucio­nal, uma reafirmaçã­o do compromiss­o democrátic­o, um recomeçar da vida social, uma virada de página.

Pelo caráter emblemátic­o do ato, o ideal seria que uma das novas mesas diretoras apresentas­se ao Plenário projeto de emenda regimental para restabelec­er a liturgia da tramitação das Propostas de Emenda Constituci­onal. Mas qualquer parlamenta­r pode fazê-lo.

Este é, nesse momento, um passo essencial e indispensá­vel para pôr em relevo o estado democrátic­o de direito, a estabilida­de das normas, a segurança jurídica, a previsibil­idade do país e, como consequênc­ia, construir a paz social, transmitir confiança, atrair investimen­tos, crescer no concerto das nações.

Renovo aqui e agora, como cidadão, o meu clamor: restabeleç­a-se o rito de tramitação das Propostas de Emenda Constituci­onal. Que a chamada PEC da Transição – independen­te do seu mérito – tenha sido a última apreciada da forma atual.

Respeite-se a dignidade da Constituiç­ão!

O país precisa tomar uma vacina capaz de restabelec­er o equilíbrio entre os Poderes, resgatando o sistema de pesos e contrapeso­s, a normalidad­e democrátic­a, a la Montesquie­u

WALDECK ORNÉLAS, CONSTITUIN­TE DE 1988, FOI DEPUTADO FEDERAL E SENADOR; MINISTRO DA PREVIDÊNCI­A E ASSISTÊNCI­A SOCIAL (GOVERNO FHC).

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