Correio da Bahia

Eu também sou Laura

- Artigo Arysa

Por muitas vezes, em algumas semanas, fui impactada com as cenas de "Falas Femininas" nos comerciais da Globo. Aqueles poucos segundos de imagens sufocantes foram mais do que suficiente­s pra eu entender que aquele recado era pra mim. E entender isso me fez chorar, ter pesadelo, perder o ar, me fez doer por dentro. Eu, logo eu, estava me reconhecen­do no que eu mais abominava.

Sem a opção de ignorar aquele convite tão poderoso/perturbado­r feito em TV aberta, assisti ao episódio de estreia na véspera do Dia da Mulher, tentando achar resposta para o que não saía da minha cabeça desde que vi o teaser. Quantas vezes eu fui, quantas vezes eu sou como Laura?

Do começo ao fim, Falas Femininas diz o que tem de ser dito e nos obriga a sair desse lugar onde escondemos as perversida­des somente para confortar o nosso próprio coração. Assim como Laura, que mesmo "concedendo" à empregada a licença de não lhe chamar de "dona", nós, mulheres brancas, muitas vezes, continuamo­s sendo a "Dona Laura" de sempre, reproduzin­do velhas práticas coloniais de subalterni­dade e hierarquia­s sociais que remontam à relação de escravizad­as e senhoras.

E é por isso Mayara (Luellem de Castro) olha pra Laura (Isabel Teixeira) enquanto olha pra gente. O olhar dela, para dentro da câmera, e pra dentro da gente, não é à toa. Ela faz para incomodar e para a gente não ter a chance de escapar de nós mesmas. Quando ela nos olha, ela sabe que a gente sabe que é pra gente. E é no momento dessa troca, entre ficção e vida real, entre o século XXVI e o Brasil Colônia, que nós saímos do papel de espectador­as e passamos a admitir que, na verdade, somos personagen­s principais do que começou há muito tempo e ainda teima em existir.

Eu sou Laura - apesar de. E você, que também é, no fundo sabe disso. Somos Laura quando achamos que, convidando

Mayara para tomar um café, estamos sendo diferentes do que foram as nossas mães, as nossas avós, as nossas bisas ...... Somos Laura quando silenciamo­s a existência, quando desencoraj­amos o cresciment­o e, ainda assim, temos a hipocrisia de empacotar tudo isso num discurso de afeto e cuidado só para minimizar a culpa. Somos Laura quando matamos e, depois de tudo que vimos ali e em nós mesmas, ainda somos capazes de fingir que Mayara não morreu.

Nesse momento, nos vemos atordoadas, pedindo socorro, vendo nossos próprios fantasmas lembrarem que sim, também somos parte dessa história triste. "Manchas", o primeiro episódio de Falas Femininas, conversa com dois mundos completame­nte diferentes. O das mulheres que, embora tentem limpar a própria consciênci­a, sentem a dor de confessar para si mesmas que também são como Laura. E o das mulheres que, sem qualquer tipo de esforço, se reconhecem, sangram e morrem junto com Mayara.

Para as Lauras: que nós possamos reconhecer os abismos e admitir as próprias falhas não para diminuir a nossa pena. Mas para que as nossas próximas gerações sejam, de fato, diferentes de nós.

Para as Mayaras, peço licença, para lembrar o que já foi dito com tanta sutileza e sensibilid­ade. Somente vocês - e ninguém mais - podem lhes dizer a hora certa de ir.

Para todas nós, mulheres: dar as mãos sempre será a melhor forma de irmos longe. ARYSA É JORNALISTA E, QUANDO O CORAÇÃO PEDE, ESCREVE O QUE VEM DE DENTRO

Somos personagen­s principais do que começou há muito tempo e ainda teima em existir

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