A busca pela própria voz
IdentidadeMulheres recorrem até a cirurgia para retomar agudos que tinham antes de anabolizantes
Quem ouvia Isabela* podia ter a sensação, como ela define, de escutar um adolescente na puberdade. Pessoalmente, a baiana sentia como se tivesse desaprendido a usar a voz, que ficou mais grave, incapaz de atingir tons agudos. Na maior parte do tempo, era como se quisesse falar e não conseguisse. Há três meses, ela tenta recuperar a voz que tinha antes de utilizar anabolizantes. A saga é compartilhada por outras mulheres.
Nos últimos três anos, otorrinolaringologistas ouvidos pela reportagem apontam uma crescente de queixas relacionadas ao agravamento da voz pós uso de anabolizantes entre mulheres cisgênero
(cis), aquelas que se identificam com o gênero atribuído de acordo com o sexo biológico.
Só na Bahia, uma otorrinolaringologista terá operado, até o fim de maio, as pregas (cordas) vocais de 12 mulheres cis que estão em busca da sonoridade antiga das suas vozes.
A Academia Brasileira de Laringologia e Voz reconhece a situação. “Os impactos negativos na voz do uso de hormônios por mulheres cisgênero têm aparecido em consultórios de otorrinolaringologistas de todo o país”, segundo o presidente da entidade, Hugo Valter Lisboa Ramos.
Chamados informalmente de anabolizantes, os esteróides anabólicos androgênicos, ou seja, compostos formados a partir da testosterona ou um de seus derivados. Como os nomes sugerem, os efeitos androgênicos estão relacionados ao aparecimento de características virilizantes (como excesso de pelos faciais, libido aumentada e voz grave) e os anabólicos, relacionados ao crescimento de tecidos, como os músculos.
Em fevereiro, Isabela buscou ajuda de endocrinologista, ginecologista e fonoaudiólogo, com quem treina a voz para recuperar o agudo que tinha antes do uso dessas substâncias. Um dos hábitos que não consegue mais ter é o de cantar a música infantil A Barata Diz Que Tem para o filho.
"Não tinha como continuar desse jeito", conta ela, que só aceitou responder às perguntas, e por escrito, se não tivesse o nome exposto pela reportagem.
As queixas dela começaram depois de um mês e meio com o "chip da beleza" sob a pele. Esse produto é um implante hormonal composto por um ou mais hormônios com potencial de auxiliar o ganho de massa magra (os anabólicos androgênicos). "Houve o alerta de que algumas alterações poderiam ocorrer, como na voz", admite Isabela.
O aumento da demanda é associado por especialistas a fatores como a facilidade de ter acesso a hormônios, a popularização do chip da beleza e a proliferação de pseudo especialistas nessas substâncias. São contextos que reverberam e retroalimentam um objetivo cada vez mais em alta: o ganho estético.
Em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina proibiu a prescrição de terapias hormonais com finalidade estética ou esportiva, baseado na inexistência de “comprovação científica que sustente a segurança do paciente”. Mas o Conselho Regional de Medicina da Bahia já apura duas denúncias ligadas ao descumprimento dessa proibição.
A prescrição é permitida em caso de necessidade, como para quem está com taxas hormonais abaixo da média e que por isso tem sintomas como cansaço e baixa libido.
Uma dessas substâncias anabólicas androgênicas, popular no país, teve a comercialização acrescida quase seis vezes: em 2020, gerarou R$ 1,8 milhão em vendas, valor que saltou para R$ 6,2 milhões no ano passado, calculou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
INÍCIO DA BUSCA
Quando a primeira mulher cis com queixas relacionadas à voz, depois do uso de anabolizante, apareceu no seu consultório, Érica Campos dialogou
na voz. Ele escreveu como o uso desses hormônios já levava “muitas mulheres para a consulta de voz com queixas à primeira vista difíceis de explicar”.
FONOAUDIOLOGIA: PARTE FUNDAMENTAL
Os hormônios são essenciais para o corpo: agem no crescimento, sistema reprodutor, desenvolvimento e equilíbrio interno. Todos temos os mesmos hormônios, variáveis em quantidade. Biologicamente, mulheres possuem mais hormônios feminilizantes (estrogênicos) que virilizantes (androgênicos), explica Luciana Oliveira, doutora em Endocrinologia pela Universidade de São Paulo. Com homens, é o oposto.
Como o corpo é um sistema intrincado, em que uma pecinha interfere na outra, qualquer mudança mexe em todo "o elo", explica a endocrinologista baiana. "O hormônio anabólico [do crescimento] não faz só uma coisa: mexe no regime de sódio e potássio, com açúcar, vai mexendo em um monte de função, inclusive outros hormônios", explica.
Por isso, os efeitos de hipertrofia
se permitir viver em função de tecnologia. A imersão no excesso de tecnologia acaba influenciando indiretamente a nossa capacidade intelectual. Desse jeito, vemos pessoas mais desatentas, evitando esforços mentais mais complexos, uma vez que o consumo tecnológico nos poupa do estímulo cerebral mais intenso”, explica a psiquiatra Camille Batista, professora do curso de Medicina da Unex.
Camille não acredita que nossa inteligência será superada pelas artificiais, mas afirma que estamos (muito) dependentes dela. E isso, sim, pode deixar futuras gerações sem potencializar seu intelecto, pois as IAs estão dando tudo de bandeja. “Ponderação é a palavra de ordem. Acredito que nada supera a nossa capacidade mental, mas não podemos permitir que, por desuso da nossa potência cerebral, isso aconteça. É a primeira vez na história que o QI dos nossos filhos será menor que os nossos. É justamente o menor esforço cerebral gerado pela comodidade das telas”.
EXERCÍCIO MENTAL
No livro ‘A Fábrica de Cretinos Digitais’, o neurocientista francês Michel Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da França, também cita o menor QI dos filhos em relação aos pais, em breve, e associa ao tempo na frente da tela como fator decisivo.
Esta nova forma de sub-utilizar o cérebro já tem sido percebida inclusive nas salas de aula. “O smartphone, nesta questão, já é um problema pro desenvolvimento humano. E isso eu consigo notar enquanto professor, de dez anos pra cá. Há uma diferença de atenção, de foco, de manutenção de interesse, de ânimo e o lastro de referências fica