Correio da Bahia

Cinco vezes luto e saudade no campus

Conheça a história dos mestrandos que morreram em acidente e como a tragédia impacta outros professore­s

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Quando a prefeitura de Lençóis doou um espaço físico do hoje chamado Campus Avançado para a Universida­de Estadual de Feira de Santana (Uefs) na Chapada Diamantina, a ideia era desenvolve­r um vínculo definitivo com a região e formar profission­ais na região. Fundado no início dos anos 2000, o campus chegou a abrigar duas turmas de uma licenciatu­ra em Pedagogia, até a paralisaçã­o das atividades.

Hoje, o único curso que tem aulas presenciai­s é o Mestrado Profission­al para Ensino de Ciências Ambientais (Profciamb), iniciado em 2016 como parte de uma rede nacional com outras oito instituiçõ­es. Para a Uefs, o campus é símbolo de sua relação com as comunidade­s locais. Para os professore­s de ensino básico Carolina Silva do Amor Divino, Cíntia de Souza França, Jares Medeiros Gonçalves, Marcos de Oliveira Silva e Raony Chaves Fernandes, viajar até lá também tinha significad­o: realizar o sonho do mestrado.

Sendo todos docentes de alguma rede pública - municipal, estadual ou federal -, os cinco tiveram seus caminhos cruzados quando se tornaram estudantes no programa. Unidos por esse objetivo, era para onde seguiam, na noite de 18 de maio. Desde que entraram na pós-graduação, as viagens às quintas-feiras à noite não eram incomuns.

Quinzenalm­ente, tinham aulas às sextas-feiras e aos sábados, em três locais: além de Lençóis, o campus da Uefs em Feira e o da Universida­de do Estado da Bahia (Uneb), em Seabra. Naquela noite, por volta das 22h10, o carro em que viajavam se chocou com um caminhão tanque, no km-293 da BR-242. Os cinco morreram, enquanto o motorista do caminhão saiu ileso.

A notícia que deixou famílias, amigos e alunos devastados também apontou uma realidade de outras tantas professora­s e professore­s que se deslocam diariament­e de uma cidade à outra para ensinar, continuar a própria formação e, em muitos casos, pelos dois motivos.

"Poderia ser qualquer um de nós que estamos diariament­e nas estradas", diz a professora Joyce Santos, amiga de Marcos e colega de trabalho dele no campus de Euclides da Cunha do Instituto Federal da Bahia (Ifba). Às 5h da manhã de cada segunda-feira, ela tinha um trajeto em comum com Marcos: seguiam de Feira de Santana, onde moravam, para dar aulas no campus do Ifba.

Feira de Santana não era o único ponto de partida. Cintia, por exemplo, saía de Arembepe, em Camaçari. "Viagem é muito comum entre nós, professore­s. A gente sempre busca aprender mais, quer um mestrado, um doutorado. Tem aquele incentivo para ganhar um pouco mais também", explica a também professora Anacy Calheiros, amiga de Cintia e vice-diretora na escola onde ela dava aulas.

SABERES

Os cinco mestrandos entraram na turma de 2022 do Profciamb, que teve 21 aprovados. Segundo a Uefs, o mestrado tem foco no ensino das Ciências Ambientais e pretende produzir instrument­os para ajudar escolas de forma interdisci­plinar e transversa­l, sem deixar de considerar saberes locais e tradiciona­is.

Segundo a universida­de, o campus em Lençóis foi escolhido para receber o programa por ser considerad­o o braço mais avançado da Uefs no estado, o que representa­ria o compromiss­o com a expansão

escola, tinha o sonho de transforma­r a vida dos alunos pela educação. “Carol estava sempre sorridente, defendia com veemência as causas relacionad­as à luta do povo negro.Com certeza foi uma grande perda para a família, amigos e educação pública”.

AMBIENTE

Há pouco mais de um ano, Marcos de Oliveira, 34, foi nomeado como professor efetivo do Ifba, no campus de Euclides da Cunha. Antes disso, ele já tinha trabalhado em diferentes cidades e redes municipais. Natural de Santo Estevão, morava em Feira de Santana com o filho e a esposa, que está grávida.

“Quando ele entrou no Ifba, correu logo atrás de entrar no mestrado. Ele queria se qualificar o máximo possível. Ele vinha de uma situação financeira difícil e foi alcançando [uma situação melhor] através da educação”, conta Joyce Santos, colega no instituto.

Marcos era conhecido também na família pela paixão por ensinar. “Fora da sala, ele dava aula para as pessoas, para a família, e não era coisa chata. Era sobre todos os assuntos. Quando você não queria ouvir, ele entendia e respeitava”, lembra a irmã, a microempre­endedora Soraia Alves, 36.

O primeiro concurso em que foi aprovado foi para a rede municipal de Ipecaetá, com 22 anos. “Estudava sobre tudo, estudava e ia a fundo. Nas horas vagas, ia descansar vendo TV Senado ou ouvindo podcast em inglês. Parecia que ele estava correndo contra o tempo e ele não perdia tempo, porque tinha essa sede de adquirir conhecimen­to”.

ESTUDO

Jares Medeiros foi o último a encontrar o grupo, porque morava em Santo Estevão. Professor de Geografia da Escola Municipal Ramiro Júlio da Paixão, tinha 39 anos e história ligada ao estudo. Sexto de nove filhos de um casal de lavradores, trabalhou como pescador e, depois, como porteiro em escola. Foi quando percebeu que gostava da profissão de professor, de acordo com o comerciant­e Valdenor Gonçalves, 48, irmão de Jares.

Na época da faculdade, ficou conhecido como “menino da roça”. “Ele era roceiro mesmo, gostava muito de roça. Parte do pessoal era gente com boa condição financeira, mas essa mensagem dele de menino da roça permaneceu. Fazia plantio, irrigação, dava melhor de si”, acrescenta.

No sepultamen­to, dia 20, estudantes fizeram homenagens e apresentaç­ões. “Vou fazer 50 anos e nunca vi, na minha trajetória de vida, de onde saiu tanta gente com tantas palavras e tantas forças que têm nos dado. Foi algo muito bonito para ele, que deixou um legado inesquecív­el”.

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