Correio da Bahia

O exercício da distração

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“Um nobre se mantém firme e não muda o rumo”. Assim diz o I Ching. Mas a verdade é que estavacans­adadelança­rasmoedas chinesas e equilibrar as paletas de caule de mileforme sobre a mesa à cata de respostas. Fazia tudo rigorosame­nte, como ensinava o livro de Wilhelm, com especial atenção ao prefácio de Jung.

O oráculo chinês sempre lhe dera conselhos importante­s. Conselhos que ela esqueceu, assim como esquece outras coisas, cometendo vezes incontávei­s os mesmos erros por distração. É preciso prestar atenção. Então passou a observar o modo como aquela moça estranha se movimentav­a, ajeitando uma coisa e outra sobre os móveis.

Era tão bonita, mesmo derrubando vinho sobre os clássicos russos e pedindo desculpas. Ou apenas imaginava que a moça estranha vinha enquanto estava só o tempo todo. O tempo é essa distração. Ou, como diz aquele nosso amigo, o tempo é algo que nos rouba, um ladrão. Queria que jogasse as moedas, que abrisse seus caminhos.

Talvez estivesse ouvindo Beatles, The long and winding road, ou apenas rindo entre os amigos. Sabe quando comentei sobre os textos de Marta Ortiz de que mais gosto? Conversamo­s longamente sobre o hexagrama 19, La doncella mística. E ainda não havia o texto sobre a Dama Sun. Hexagrama 9, Cuando uno comienza a dudar.

Deixa que eu lance sobre a mesa outra vez os meus Kanjis. Talvez fale um pouco sobre elas. Há pelo menos cinco tipos diferentes de moedas chinesas. Vê estas? São autênticas. Foram cunhadas durante o reinado do Imperador T’ai Hui Tsung, aquele que chamam de Sheng Sung. Estilo selo, quase pictograma­s.

Mas a moça estranha fechou o livro de Wilhelm e disse que o hexagrama que melhor a define é 56, O Viajante. Parecia tão inquieta, rolando as moedas entre os dedosdamão.Saqueiumin­censo, um lenço, varetas, a ideia de tatuarmos um dragão. Há de passar, apenas fique em silêncio. Sabe quando falei sobre aquele restaurant­e?

Pois bem, os garçons pareciam nos ignorar o tempo todo. Nunca acertavam o pedido dos outros clientes. Um deles, mais atrevido, até piscou os olhos para você. E, logo, quando o prato veio finalmente, desistimos de comer por lá. Voltei outro dia como se não o conhecesse. E tudo se repetiu, exatamente do mesmo jeito.

ERA TÃO BONITA, MESMO DERRUBANDO VINHO SOBRE OS CLÁSSICOS RUSSOS E PEDINDO DESCULPAS

KÁTIA BORGES É ESCRITORA E JORNALISTA

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