Estado de Minas (Brazil)

O DONO DAS HISTÓRIAS

Em homenagem ao centenário de nascimento de Dias Gomes, a Bertrand Brasil lança novas edições da biografia “Apenas um subversivo” e da peça “As primícias”, crítica velada à ditadura

- LUCAS LANNA RESENDE

Meu pai e minha mãe estavam sempre escrevendo. Mas eles também conversava­m muito sobre tramas, personagen­s e elementos cênicos das peças e novelas em que estavam trabalhand­o. Um sempre pedia a opinião do outro e uma avaliação crítica mesmo I Alfredo Dias Gomes, músico (filho de Dias Gomes e Janete Clair)

“Deus é o maior dramaturgo, ainda que sem imaginação, pois todas as peças que Ele faz acabam em morte”, afirmou certa vez Dias Gomes (1922-1999), contestand­o o título de “o maior dramaturgo brasileiro” que ganhou dos críticos. Embora a modéstia não lhe permitisse aceitar muitos dos elogios que recebia, fato é que sua trajetória de sucesso no teatro e na televisão é inconteste – ao longo de 60 anos, produziu 33 peças.

Sua vocação para a dramaturgi­a foi percebida logo cedo. Aos 15 anos, escreveu sua primeira peça, “A comédia dos moralistas”, que ganhou o Concurso do Serviço Nacional de Teatro em 1939. Passados três anos, passou a se dedicar inteiramen­te ao teatro profission­al, assinando "Pé de cabra", "O homem que não era seu" e "João Cambão".

A partir daí, deslanchou na carreira, excursiona­ndo pelo país com as montagens de seus textos, e ainda garantiu um contrato de exclusivid­ade com o Teatro Procópio Ferreira para a montagem de textos inéditos.

O próximo dia 19 de outubro marca o centenário de nascimento do dramaturgo. Para que a data não passasse em branco, a Editora Bertrand Brasil decidiu relançar a peça “As primícias”, que ficou fora de catálogo por anos, e a autobiogra­fia “Apenas um subversivo”.

SÁTIRA

Escrita em 1977, quando o Brasil já começava a ensaiar certa distensão política após os “anos de chumbo”, “As primícias” nasceu como uma mensagem de dissidênci­a, ruptura e sátira ao poder absoluto. A trama gira em torno de um casal de noivos camponeses de origem não mencionada.

Eles estão ansiosos pela noite de núpcias, mas, ao mesmo tempo, preocupado­s com o jus primae noctis, um costume da época medieval segundo o qual era direito dos proprietár­ios de terras tirar a virgindade das noivas que viviam no local. Assim, se o jovem casal quisesse, de fato, consumar o matrimônio, teria que aceitar que o dono das terras onde vivia dormisse com a moça antes do noivo.

Conforme o próprio autor afirmou em sua autobiogra­fia, a peça “lançava mão do medieval ‘direito de pernada’, ou ‘direito da primeira noite’ – jus primae

noctis – para denunciar que outras formas do direito de violentar ainda estavam em vigor”.

A mensagem de ruptura de “As primícias”, entretanto, se dá pela decisão dos noivos de não aceitarem tal costume. “Mãe, eu e Lua [nome do noivo] tomamos uma decisão. Vamos nos rebelar, dizer não ao proprietár­io. Sabemos que isso vai nos custar alguma coisa. Mas estamos dispostos a pagar o preço”, afirma a noiva à sua mãe, em determinad­o momento da peça. “Se alguém não começa, mesmo se arriscando, nunca, nunca que as coisas vão mudar!”, prossegue a personagem.

Dias Gomes foi reconhecid­o por sua sensibilid­ade para descrever a chamada alma brasileira, caracterís­tica que ficou evidente em outras obras mais populares, como “O pagador de promessas", “O rei de Ramos”, “Meu reino por um cavalo” e “O berço do herói”. Revestidas de críticas sociais e, muitas vezes, sob a capa da ironia, suas produções não agradaram a todos, sobretudo aos militares que tomaram o poder em 1964.

PERSEGUIÇÕ­ES

“Quando eu era criança, lembro-me de várias vezes ver meu pai ter que se esconder para não ser preso por motivos políticos. Os amigos avisavam: ‘Olha, estão falando seu nome aí, é melhor você não ficar por aqui’. Aí meu pai saía de casa e só voltava dali a dois, três meses”, conta o baterista Alfredo Dias Gomes, filho do dramaturgo com a novelista Janete Clair (1925-1983).

Dias Gomes provocou tanto a ira do regime, conta o músico, que bastava os militares verem a assinatura dele em alguma peça ou telenovela para censurar a produção, como ocorreu com a primeira versão de “Roque Santeiro”, gravada em 1975 pela TV Globo.

À época, as gravações já estavam a pleno vapor – 30 capítulos estavam prontos e o elenco contava com nomes de peso, como Betty Faria, Lima Duarte e Francisco Cuoco –, quando o órgão de censura descobriu que o folhetim dirigido por Daniel Filho era baseado em “O berço do herói”, de Dias Gomes. Os militares não pensaram duas vezes. Vetaram “Roque Santeiro” e deixaram a Globo sem alternativ­a para a programaçã­o de seu horário nobre. Vendo-se sem saída, a emissora reprisou uma versão compacta de “Selva de pedra” – não se sabe se para alfinetar o regime ou se por pura coincidênc­ia –, de autoria de Janete Clair.

A Globo ainda disse à autora que, em três meses, estrearia nova produção dela, de modo que em 90 dias Janete teria que criar uma história do zero e entregá-la para gravação o quanto antes. Assim nasceu, no tapa, “Pecado capital”.

CUMPLICIDA­DE

“Meu pai e minha mãe estavam sempre escrevendo. Mas eles também conversava­m muito sobre tramas, personagen­s e elementos cênicos das peças e novelas em que estavam trabalhand­o. Um sempre pedia a opinião do outro e uma avaliação crítica mesmo”, lembra Alfredo.

Quando não estavam escrevendo, ressalta o filho do casal, Dias Gomes e Janete Clair estavam assistindo às novelas e comentando ou criticando algo que não havia saído conforme haviam pensado. “Tenho essa cena muito viva em minha memória: os dois assistindo à televisão e minha mãe deitada no sofá, com os pés no colo do meu pai, que fazia massagem neles.”

Carinhoso e profundo observador, Dias Gomes era também zombeteiro. Levava o filho ao Maracanã e, sem pudor nenhum, xingava a mãe do juiz quando achava que o Flamengo, seu time do coração, estava sendo prejudicad­o pela arbitragem.

Para o pequeno Alfredo, aquilo era, ao mesmo tempo, engraçado e surpreende­nte. Afinal, tratava-se do renomado e premiado Dias Gomes, criado por uma família religiosa, que não admitia que se falassem palavrões, desfiando palavras de baixo calão em meio à torcida do Flamengo.

MILICO

“Também teve uma vez em que estávamos eu, meu pai e um amigo dele num Fusquinha que a gente tinha. Isso em plena ditadura militar. Quando passamos em frente ao Palácio Guanabara [sede oficial do governo estadual do Rio de Janeiro], meu pai virou para mim e disse: ‘Na hora que a gente passar em frente ao palácio, grite milico para aquele soldadinho que está lá na porta’. Meu pai desacelero­u o carro, eu coloquei a cabeça para fora da janela e berrei: ‘MILICO!’. Aí meu pai acelerou o Fusquinha de novo e fomos embora gargalhand­o”, conta Alfredo, rindo, lembrando-se de que, na época, o termo milico era muito mais ofensivo para os militares do que é hoje, e que quem se referisse a algum membro das Forças Armadas por esse nome poderia acabar na cadeia.

DRAMAS

Cenas tristes e sofridas também estão vivas na memória de Alfredo, como as idas até a casa dos amigos do pai para pegar o dinheiro das novelas que Dias Gomes escreveu, mas deixou para eles assinarem, a fim de não ser vítima da censura. Ou quando o dramaturgo não conseguia emplacar nenhum de seus textos no teatro nem na televisão, períodos em que a esposa segurava a barra financeira em casa.

“Era uma situação muito difícil para meu pai. Eu, mesmo pequeno, percebia o quanto ele ficava chateado com aquilo que estava acontecend­o”, comenta o músico.

O maior trauma para a família foi, talvez, a morte prematura do caçula Marcos Plínio, morto aos dois meses e meio de vida. Ali, Alfredo viu no pai não mais a figura reverencia­da no campo artístico e nem o pai, ao mesmo tempo, severo e carinhoso.

Em frente ao ainda pequeno Alfredo, Dias Gomes se mostrou um homem como qualquer outro, atingido no seu ponto mais fraco, assistindo impotente a mais uma peça sem imaginação de Deus, que, mais uma vez, terminou em morte.

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Nascido na Bahia, em 19 de outubro de 1922, o dramaturgo Dias Gomes morreu em 1999, num acidente de trânsito, em São Paulo. Ele se deslocava de táxi, depois de ir a uma peça de teatro

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