Estado de Minas (Brazil)

Estava em curso um genocídio dos yanomamis

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Não poderia ser diferente, depois da reportagem da jornalista Sônia Bridi na reserva indígena yanomami, domingo, no “Fantástico” (TV Globo). O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou ontem a investigaç­ão da possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediên­cia de decisões judiciais por parte de autoridade­s do governo Jair Bolsonaro.

São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentraç­ão de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulhara­m o estômago quando lá estive e vi montanhas de sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impression­a é a “racionalid­ade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judiaalemã Hannah Arendt.

O conceito foi cunhado a partir do julgamento, em Jerusalém, do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsáve­l por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do

Departamen­to de Segurança de Berlim. Um dos principais colaborado­res de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelense­s, que o sequestrar­am e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.

Convidada para assistir, Arendt escreveu um livro sobre o julgamento. Chegou à conclusão de que Eichmann mão era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.

Para Hannah Arendt, essa seria a justificat­iva para a ascensão em regimes totalitári­os e a banalizaçã­o da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecim­ento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalizaçã­o do mal que praticava. No entendimen­to de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalm­ente essa. Sua racionalid­ade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.

As crianças yanomamis não foram exterminad­as nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistênci­a médica; as adolescent­es e jovens eram exploradas sexualment­e em troca de comida. Os yanomamis estavam sendo exterminad­os por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos yanomamis era uma farsa.

Política de extermínio

“A farsa yanomami” disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre

ONGs e forças estrangeir­as para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘yanomamis’ e preparar a dominação futura da Amazônia [...] para a posterior criação de países indígenas independen­tes, sob a tutela das Nações Unidas”.

O general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucio­nal de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamen­te, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamen­tos de fronteira das Forças Armadas, governador­es e prefeitos, foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiro­s estavam contaminan­do os rios, matando e explorando os yanomamis, em aliança com os traficante­s de cocaína.

Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiro­s, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáve­is pelos órgãos de fiscalizaç­ão, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.

Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas com base nos fatos já comprovado­s. De acordo com a lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Determinou também a retirada dos garimpeiro­s em sete terras indígenas.

E ainda que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentad­o um diagnóstic­o dessas comunidade­s, com o respectivo planejamen­to e cronograma de execução de medidas. Seu despacho traduziu a banalizaçã­o do mal: "Quadro gravíssimo e preocupant­e, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participaç­ão de altas autoridade­s federais".

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