Estado de Minas (Brazil)

A arte da presença

- MARCELO PEREIRA RODRIGUES Filósofo, escritor e palestrant­e

Recentemen­te, fui contratado para uma palestra em Belo Horizonte e a mediadora sugeriu um tema: “A arte da presença”. Gostei da sugestão, uma vez que percebo que muitas pessoas estão ensimesmad­as, vivendo em suas cavernas platônicas. O Mito da Caverna de Platão (427 a.C. – 347 a.C.) é uma das passagens mais bonitas da filosofia e é incrível a atualidade de seus ensinament­os, mesmo datando de dois milênios e meio. Lá, como aqui, as pessoas contemplam as sombras no fundo de suas cavernas, mesmo sendo as nossas iluminadas pelas telas dos smartphone­s. Vivemos a ilusão de que somos benquistos, amados e entendemos que temos conexões com gente de todo o mundo. Mas não conseguimo­s interagir com o vizinho do prédio onde residimos.

Com a pandemia da COVID-19, as reuniões e palestras migraram exclusivam­ente para o mundo virtual e isso foi um alento para dialogarmo­s com as outras pessoas. Agora, com o retorno à normalidad­e, como é interessan­te propormos banquetes ao nosso público! “O banquete” é mais um clássico texto de Platão, onde os comes e bebes são pano de fundo para discussões de altíssimo nível, todos investigan­do e problemati­zando os dilemas da vida. Sim, isso é filosofar! Infelizmen­te, o que observamos atualmente é uma fratura disso. Convide um amigo para um lançamento de livro; um recital de poesia; uma palestra de filosofia e ele logo estará ocupado com os seus afazeres, viagens & afins, mesmo que seja tudo mentira e apenas despiste para não comparecer ao seu evento “chato”.

Agora, convide esse mesmo amigo para bebedeira regada a churrasco, qualquer um destes “churrasco na laje” (utilizo aqui a expressão do meu colega Luiz Felipe Pondé) e as presenças serão garantidas. Se tiver piscina então, aí é aquele festival grotesco de pelancas e som de funk às alturas.

Obviamente, que estou puxando brasa para a minha picanha (já que falamos de churrasco na linha acima), mas a arte da presença é manter o futebol amador aos domingos pela manhã (excluindo a cervejinha após a peleja). São as mulheres “perderem tempo” nos salões de beleza, conversand­o enquanto arrumam suas madeixas. É caminharmo­s pela natureza aproveitan­do o entorno de matas belíssimas e, quando perceberem que a conexão do wi-fi não pega, agradeça a verdadeira conexão de estar contigo mesmo, sem alaridos nem confusão. Precisamos retornar às coisas mesmas, não acham?

Assim, uma presença num evento cultural, com livros, debates interativo­s e bom humor são instrument­os para uma reflexão sobre as nossas condutas e, para aqueles que não têm o hábito desses encontros, o risco é se apaixonare­m e participar de muitos outros. Não são poucas as pessoas que elogiam os eventos pela abrangênci­a de temas abordados.

Reflitam sobre esta minha carta e mergulhem no mais íntimo de si mesmos. Relativize­m o que é estar conectado e conversem mais com pessoas de carne e osso, sendo que este banquete pode se traduzir em um cafezinho. Tenho por hábito me permitir “perder horas” conversand­o com pessoas que agregarão valor à minha vida e, dia desses, proseei com um sábio retirado da vida e das atividades comezinhas. Este “Zaratustra” moderno (Zaratustra é um clássico personagem do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, 1844-1900) veio me mostrar que extemporân­eos ainda persistem, como se dissessem “obrigado, não” a este modo de vida estúpido e rotineiro que estamos levando, nessa rotina besta de domingo, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo, segunda...

Espero ter provocado vocês. Venham discutir comigo presencial­mente quando me apresentar em sua respectiva cidade...

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