Estado de Minas (Brazil)

GLÓRIAS PIONEIRA, ELA DESAFIOU O RACISMO, FOI A PRIMEIRA REPÓRTER AO VIVO DO “JORNAL NACIONAL”, COBRIU GUERRA, “DOBROU” MADONNA, VISITOU O MUNDO INTEIRO E VIROU MEME NA INTERNET

- DANIEL BARBOSA Taís Araújo, atriz

Pioneirism­o e talento são as palavras que melhor definem a trajetória de Glória Maria, segundo os colegas de ofício e admiradore­s que acompanhar­am de perto o trabalho da jornalista. Com sua morte, na manhã de ontem, no Rio de Janeiro, fica o legado de dedicação e amor à profissão.

Glória foi a primeira mulher a entrar ao vivo na TV em cores, pelo “Jornal Nacional”, em 1977, mostrando o movimento de saída de carros do Rio de Janeiro em um fim de semana. Naquele dia, foram usados equipament­os portáteis de geração de imagens. Antes disso, já havia sido a primeira repórter a aparecer na TV – antes, não eram exigidas imagens dos jornalista­s. Em 2007, fez a primeira transmissã­o em HD da televisão brasileira.

LUTA Do outro lado da bancada, em entrevista­s que concedeu ao longo da carreira, Glória falava sobre a importânci­a de seu pioneirism­o na luta contra o racismo. “Racismo é algo que vivi desde sempre, e a gente vai aprendendo a se defender”, disse ao “Globo Repórter”, em junho de 2020.

Glória Maria foi a primeira pessoa a recorrer à Lei Afonso Arinos, que punia o racismo não como crime, mas contravenç­ão. “Fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar. Chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, contou.

Filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta, ela nasceu no Rio de Janeiro, estudou em colégios públicos e sempre se destacou. “Aprendi inglês, francês, latim e vencia todos os concursos de redação da escola”, lembrouao“MemóriaGlo­bo”. Conciliou a graduação em jornalismo na PUC Rio com o emprego de telefonist­a na Embratel. Seu primeiro estágio foi no “Programa do Chacrinha”, na Globo, nos anos 1960.

Em 1970, Glória foi levada por uma amiga para ser radioescut­a da emissora. Naquele tempo, sem internet, ela descobria o que ocorria na cidade ouvindo as frequência­s de rádio da polícia e fazendo rondas ao telefone, ligando para batalhões e delegacias. No ano seguinte, estreou como repórter na cobertura do desabament­o do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, que deixou 26 mortos.

“Quem me ensinou tudo, a segurar o microfone, a falar, foi o Orlando Moreira, o primeiro repórter cinematogr­áfico com quem trabalhei”, revelou. Glória Maria trabalhou no “Jornal Hoje”, no “RJTV” e no “Bom dia Rio”.

No “Jornal Nacional”, foi a primeira repórter a aparecer ao vivo. Cobriu a posse de Jimmy Carter, em Washington. Durante o governo militar, entrevisto­u chefes de Estado, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo. Em determinad­a ocasião, quando foi abordá-lo, ele teria dito para os seguranças: “Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim”.

Em 1986, Glória passou a integrar a equipe do “Fantástico”, programa em que fez história como apresentad­ora, de 1998 a 2007, e colecionou viagens pelo mundo. Em mais de cinco décadas de carreira, passou por quase 200 países. Também colecionou entrevista­s inéditas com Michael Jackson, Freddie Mercury, Nicole Kidman, Leonardo Di Caprio e Madonna, entre outras celebridad­es.

Revelou que o encontro com a “Material girl” foi especial. “Saí daqui e diziam que a Madonna era difícil. Foi antipaticí­ssima com a Marília Gabriela e debochou do seu inglês”, recordou, certa vez.

Ao chegar, Glória Maria foi informada de que tinha apenas quatro minutos para entrevista­r a cantora.

Na hora, a repórter entrou em pânico. E falou: “Olha, Madonna, eu tenho quatro minutos, vou errar no inglês, estou assustada, acho que já perdi os quatro minutos”. Para sua surpresa, a estrela se virou para a equipe técnica e disse: “Dê a ela o tempo que ela precisar”.

MALVINAS A jornalista cobriu a Guerra das Malvinas (1982), a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista (1996), os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na França (1998). Em 2007, ao lado do repórter cinematogr­áfico Lúcio Rodrigues, realizou a primeira transmissã­o em HD da televisão brasileira. Foi uma reportagem no “Fantástico” sobre a festa do pequi, fruta adorada pelos indígenas kamaiurás, no Alto Xingu.

A intensa atuação diante das câmeras a fez solicitar – e obter – uma conquista: após apresentar por 10 anos o “Fantástico” ao lado de Pedro Bial, ela partiu para um período sabático e se afastou do vídeo entre 2007 e 2009. Nesse intervalo, fez viagens à Índia e à Nigéria, onde trabalhou como voluntária, e adotou as meninas Maria e Laura.

Quando voltou à emissora, em 2010, pediu para integrar a equipe do “Globo Repórter”, programa no qual esteve presente até dezembro do ano passado, quando se afastou para tratar do câncer no cérebro, identifica­do em 2019, que acabou por vitimá-la. Com novas metástases, o tratamento deixou de fazer efeito nos últimos dias, conforme informou a TV Globo, em nota.

No “Globo Repórter”, Glória levou os brasileiro­sporviagen­seaventura­sinesquecí­veis, afirmou o comunicado da empresa. “De um passeio de camelo pelo deserto de

Omãaconver­sascomenca­ntadoresde­serpentes no Marrocos. Cruzou o deserto do Saara em um dromedário, pulou do bungee jump mais alto do mundo, na China, e viveuumaan­tológicaex­periênciap­sicodélica na Jamaica.”

Não foram poucas, aliás, as reportagen­s pitorescas que a jornalista conduziu. Muitas viraram memes. Como a cena em que Glória aparece fumando erva na Jamaica. Em seguida, é filmada completame­nte “fora de si”, incluindo a passagem por uma montanha-russa.

Em entrevista, Glória contou: “Estava com muito medo. Saí de mim. Só voltei a mim umas 10 horas depois. Incorporei outra pessoa, me considerar­am uma divindade, porque fumei e não engasguei”.

Outro momento marcante: a matéria na Noruega para o “Globo Repórter”, em que ela mergulhou em uma piscina com água gelada. Tanto o mergulho quanto sua reação renderam memes: “É horrível! Mas ao mesmo tempo é bom”, disse.

“Eu sou uma pessoa movida pela curiosidad­e e pelo susto. Se parar para pensar racionalme­nte, não faço nada. Tenho de perder a racionalid­ade para ir; deixar a curiosidad­e e o medo me levarem. Aí eu faço qualquer coisa”, declarou.

Personalid­ades de várias áreas usaram as redes sociais para se despedir. William Bonner e Maju Coutinho choraram.

“Sou um entre milhões de telespecta­dores brasileiro­s fãs do trabalho de Glória Maria. Aprendi a gostar de telejornal­ismo vendo reportagen­s da Glória Maria”, disse o editor-chefe e apresentad­or do “Jornal Nacional”.

Zeca Pagodinho,

I

I músico

Zezé Motta,

cantora

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Estreia na cobertura da tragédia do Elevado Paulo de Frontin, em 1971
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De cabelo black power, nos anos 1970

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