GLÓRIAS PIONEIRA, ELA DESAFIOU O RACISMO, FOI A PRIMEIRA REPÓRTER AO VIVO DO “JORNAL NACIONAL”, COBRIU GUERRA, “DOBROU” MADONNA, VISITOU O MUNDO INTEIRO E VIROU MEME NA INTERNET
Pioneirismo e talento são as palavras que melhor definem a trajetória de Glória Maria, segundo os colegas de ofício e admiradores que acompanharam de perto o trabalho da jornalista. Com sua morte, na manhã de ontem, no Rio de Janeiro, fica o legado de dedicação e amor à profissão.
Glória foi a primeira mulher a entrar ao vivo na TV em cores, pelo “Jornal Nacional”, em 1977, mostrando o movimento de saída de carros do Rio de Janeiro em um fim de semana. Naquele dia, foram usados equipamentos portáteis de geração de imagens. Antes disso, já havia sido a primeira repórter a aparecer na TV – antes, não eram exigidas imagens dos jornalistas. Em 2007, fez a primeira transmissão em HD da televisão brasileira.
LUTA Do outro lado da bancada, em entrevistas que concedeu ao longo da carreira, Glória falava sobre a importância de seu pioneirismo na luta contra o racismo. “Racismo é algo que vivi desde sempre, e a gente vai aprendendo a se defender”, disse ao “Globo Repórter”, em junho de 2020.
Glória Maria foi a primeira pessoa a recorrer à Lei Afonso Arinos, que punia o racismo não como crime, mas contravenção. “Fui barrada em um hotel por um gerente que disse que negro não podia entrar. Chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais. Ele foi expulso do Brasil, mas se livrou da acusação pagando uma multa ridícula. Porque o racismo, para muita gente, não vale nada, né? Só para quem sofre”, contou.
Filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta, ela nasceu no Rio de Janeiro, estudou em colégios públicos e sempre se destacou. “Aprendi inglês, francês, latim e vencia todos os concursos de redação da escola”, lembrouao“MemóriaGlobo”. Conciliou a graduação em jornalismo na PUC Rio com o emprego de telefonista na Embratel. Seu primeiro estágio foi no “Programa do Chacrinha”, na Globo, nos anos 1960.
Em 1970, Glória foi levada por uma amiga para ser radioescuta da emissora. Naquele tempo, sem internet, ela descobria o que ocorria na cidade ouvindo as frequências de rádio da polícia e fazendo rondas ao telefone, ligando para batalhões e delegacias. No ano seguinte, estreou como repórter na cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, que deixou 26 mortos.
“Quem me ensinou tudo, a segurar o microfone, a falar, foi o Orlando Moreira, o primeiro repórter cinematográfico com quem trabalhei”, revelou. Glória Maria trabalhou no “Jornal Hoje”, no “RJTV” e no “Bom dia Rio”.
No “Jornal Nacional”, foi a primeira repórter a aparecer ao vivo. Cobriu a posse de Jimmy Carter, em Washington. Durante o governo militar, entrevistou chefes de Estado, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo. Em determinada ocasião, quando foi abordá-lo, ele teria dito para os seguranças: “Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim”.
Em 1986, Glória passou a integrar a equipe do “Fantástico”, programa em que fez história como apresentadora, de 1998 a 2007, e colecionou viagens pelo mundo. Em mais de cinco décadas de carreira, passou por quase 200 países. Também colecionou entrevistas inéditas com Michael Jackson, Freddie Mercury, Nicole Kidman, Leonardo Di Caprio e Madonna, entre outras celebridades.
Revelou que o encontro com a “Material girl” foi especial. “Saí daqui e diziam que a Madonna era difícil. Foi antipaticíssima com a Marília Gabriela e debochou do seu inglês”, recordou, certa vez.
Ao chegar, Glória Maria foi informada de que tinha apenas quatro minutos para entrevistar a cantora.
Na hora, a repórter entrou em pânico. E falou: “Olha, Madonna, eu tenho quatro minutos, vou errar no inglês, estou assustada, acho que já perdi os quatro minutos”. Para sua surpresa, a estrela se virou para a equipe técnica e disse: “Dê a ela o tempo que ela precisar”.
MALVINAS A jornalista cobriu a Guerra das Malvinas (1982), a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista (1996), os Jogos Olímpicos de Atlanta (1996) e a Copa do Mundo na França (1998). Em 2007, ao lado do repórter cinematográfico Lúcio Rodrigues, realizou a primeira transmissão em HD da televisão brasileira. Foi uma reportagem no “Fantástico” sobre a festa do pequi, fruta adorada pelos indígenas kamaiurás, no Alto Xingu.
A intensa atuação diante das câmeras a fez solicitar – e obter – uma conquista: após apresentar por 10 anos o “Fantástico” ao lado de Pedro Bial, ela partiu para um período sabático e se afastou do vídeo entre 2007 e 2009. Nesse intervalo, fez viagens à Índia e à Nigéria, onde trabalhou como voluntária, e adotou as meninas Maria e Laura.
Quando voltou à emissora, em 2010, pediu para integrar a equipe do “Globo Repórter”, programa no qual esteve presente até dezembro do ano passado, quando se afastou para tratar do câncer no cérebro, identificado em 2019, que acabou por vitimá-la. Com novas metástases, o tratamento deixou de fazer efeito nos últimos dias, conforme informou a TV Globo, em nota.
No “Globo Repórter”, Glória levou os brasileirosporviagenseaventurasinesquecíveis, afirmou o comunicado da empresa. “De um passeio de camelo pelo deserto de
Omãaconversascomencantadoresdeserpentes no Marrocos. Cruzou o deserto do Saara em um dromedário, pulou do bungee jump mais alto do mundo, na China, e viveuumaantológicaexperiênciapsicodélica na Jamaica.”
Não foram poucas, aliás, as reportagens pitorescas que a jornalista conduziu. Muitas viraram memes. Como a cena em que Glória aparece fumando erva na Jamaica. Em seguida, é filmada completamente “fora de si”, incluindo a passagem por uma montanha-russa.
Em entrevista, Glória contou: “Estava com muito medo. Saí de mim. Só voltei a mim umas 10 horas depois. Incorporei outra pessoa, me consideraram uma divindade, porque fumei e não engasguei”.
Outro momento marcante: a matéria na Noruega para o “Globo Repórter”, em que ela mergulhou em uma piscina com água gelada. Tanto o mergulho quanto sua reação renderam memes: “É horrível! Mas ao mesmo tempo é bom”, disse.
“Eu sou uma pessoa movida pela curiosidade e pelo susto. Se parar para pensar racionalmente, não faço nada. Tenho de perder a racionalidade para ir; deixar a curiosidade e o medo me levarem. Aí eu faço qualquer coisa”, declarou.
Personalidades de várias áreas usaram as redes sociais para se despedir. William Bonner e Maju Coutinho choraram.
“Sou um entre milhões de telespectadores brasileiros fãs do trabalho de Glória Maria. Aprendi a gostar de telejornalismo vendo reportagens da Glória Maria”, disse o editor-chefe e apresentador do “Jornal Nacional”.
Zeca Pagodinho,
I
I músico
Zezé Motta,
cantora