Estado de Minas (Brazil)

Viradouro mostra a força da origem ancestral

O ENREDO VAI ALÉM DA INTERPRETA­ÇÃO DE CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS, CLÁSSICO DE ROBERTO DAMATTA, QUE MERGULHA NO DILEMA DE GRANDES DESIGUALDA­DES

- LUIZ CARLOS AZEDO >>>>>politica.em@uai.com.br

A primeira grande revolução nos desfiles de escola de samba foi protagoniz­ada pelo Salgueiro, em 1963, com o enredo Xica da Silva. O coreógrafo Fernando Pamplona deslumbrou o público e o mundo do samba no primeiro desfile da Avenida Rio Branco, com uma protagonis­ta negra e uma revolução nas coreografi­as, concebidas para serem vista de cima para baixo, ou seja, das arquibanca­das e das janelas dos prédios.

A história da ex-escrava que se uniu a João Fernandes de Oliveira, responsáve­l pela exploração dos diamantes no Arraial do Tijuco (atual Diamantina), no auge do ciclo da mineração, foi narrada com uma explosão vermelha e branca, resplandes­cente, porque a escola se encheu de brilhos para desfilar ao raiar do sol, que subiu por trás da catedral da Candelária, enquanto o povo gritava “Já ganhou!”

Neste ano, foi a vez de a vermelha e branca Viradouro vencer pela terceira vez o desfile de carnaval do Rio de Janeiro. A escola de samba nasceu no complexo de favelas surgido na garganta que leva o seu nome, nos limites do bairro de Santa Rosa, em Niterói. Dessa vez, o protagonis­mo não foi uma ex-escrava que seduziu o senhor branco, mas um mítico exército de guerreiras negras do Reino de Daomé: “Eis o poder que rasteja na terra/ Luz pra vencer essa guerra, a força do vodun/ Rastro que abençoa Agojiê/ Reza pra renascer, toque de Adarrum”, canta o samba enredo da escola.

No revolucion­ário desfile de Xica da Silva, o espanto ficou por conta de um minueto coreografa­do por Mercedes Baptista, a primeira negra a integrar o balé do Theatro Municipal, e a fantasia de Isabel Valença, a protagonis­ta, tinha peruca de 1,10 metro, enfeitada com pérolas e cauda de sete metros de compriment­o. Projetavam um estilo de vida que invertia os papéis da sociedade elitista e excludente em que viviam, mas reproduzia o modo de vida da aristocrac­ia colonial.

No desfile da Viradouro, a assimilaçã­o pela elite foi substituíd­a pela afirmação da origem ancestral: adarrum, em iorubá, é o toque de atabaques e agogôs que tem o poder de invocar os orixás; agojiê são as guerreiras de Daomé. O choque cultural é a evocação dos espíritos voduns e outros elementos da essência divina que governa a Terra nos cultos africanos, as forças da natureza e da sociedade humana, os espíritos das árvores e das rochas.

A comissão de frente intitulada “Alafiá”, com 24 componente­s, trouxe uma grande sacerdotis­a, protegida por guerreiras Agojies. Na sequência, o espanto: uma grande serpente sai do seu ninho e desliza pelo chão da avenida. Em meio ao ritual das guerreiras, surge uma mulher serpente. A luz dos holofotes refletida nos adereços e fantasias teve um efeito deslumbran­te.

ALÉM DO IMAGINÁRIO

Não à toa, Grande Rio, Imperatriz, Mocidade e Beija-Flor tentam impugnar a comissão de frente da Viradouro, com a perda de 0,5 ponto, porque extrapolou o limite de 15 integrante­s visíveis. Mas como 0,7 ponto à frente da segunda colocada, nem o recurso tira o título da escola. Num país onde cresce a influência dos evangélico­s, o sincretism­o religioso continua sendo majoritári­o, porém, é cada vez menos traduzido por santos católicos, como São Benedito e São Jorge.

A vitória do enredo “Arroboboi, Dangbé”, que ressalta energia do culto ao vodum serpente, reflete a mudança de paradigma. Na mitologia africana, representa a cobra arco-íris, a mobilidade, a agilidade e a destreza. É o orixá oxumaré.

No enredo da Viradouro, esse culto se estabelece no Brasil com a instalação de terreiros na Bahia por Ludovina Pessoa, sacerdotis­a daomeana que veio com a missão de perpetuar a crença nos voduns. Ludovina também se torna liderança nas irmandades católicas e na formação do que hoje é o candomblé Jeje. Essa linhagem tem como referência o Terreiro do Bogum, centenário templo religioso em Salvador, dedicado à Serpente. Enfatiza o culto dos ancestrais e sustenta que os espíritos dos mortos vivem lado a lado com o mundo dos vivos.

O enredo da Viradouro vai além da interpreta­ção de carnavais, malandros e heróis, clássico da antropolog­ia brasileira, que mergulha no dilema que faz do Brasil um país de grandes desigualda­des, mas de futuro promissor por sua capacidade de tradução cultural.

Para Roberto DaMatta, tanto o carnaval quanto seus malandros e heróis são criações sociais que refletem os problemas e dilemas básicos da nossa sociedade. Mito e rito são dramatizaç­ões ou maneiras de chamar a atenção para certos aspectos da realidade social, dissimulad­os pelas rotinas e complicaçõ­es do cotidiano.

Entretanto, a ancestrali­dade africana evocada pela Viradouro é real. O filme “A Mulher Rei“, protagoniz­ado por Viola Davis, também conta a história das mulheres guerreiras Agojie. Não se trata apenas do imaginário. O reino do Daomé, na África Ocidental, teve seu auge na década de 1840, quando ostentava um exército de 6 mil mulheres conhecido em toda a região por sua bravura. A primeira menção a elas é de 1729. ■

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