Estado de Minas (Brazil)

Novo coronelism­o: abuso de poder econômico e impunidade

DESDE O TSUNAMI ELEITORAL DE 2018, OS PARTIDOS OPERAM UM MOVIMENTO DE BLINDAGEM ELEITORAL QUE SE CARACTERIZ­A PELO ABUSO DO PODER ECONÔMICO E GARANTIAS DE IMPUNIDADE

- LUIZ CARLOS AZEDO >>>>>politica.em@uai.com.br

Um presidente da República não pode ser investigad­o nem processado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no exercício do mandato, somente o Congresso pode fazê-lo, por de um processo de impeachmen­t, seja por causa da compra irregular de um Fiat Elba ou uma “pedalada fiscal”, como ocorreu com os ex-presidente­s Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff, respectiva­mente. É um processo político, cujo desfecho depende da consistênc­ia de sua base parlamenta­r. Ministros do STF também têm prerrogati­vas excepciona­is, mas podem ter seus mandatos cassados pelo Senado Federal.

Senadores e deputados não têm essa prerrogati­va. Podem ser investigad­os e processado­s, como qualquer cidadão, mas apenas pelo Supremo. Agora, porém, a oposição e o baixo clero da Câmara se articulara­m para votar uma mudança constituci­onal que lhes garanta impunidade no exercício do mandato, obstruindo investigaç­ões da Polícia Federal que só ocorrem a mando do STF, por terem foro privilegia­do. Além disso, querem acabar com esse foro, para serem processado­s em primeira instância, e proibir decisões monocrátic­as sobre a constituci­onalidade de suas deliberaçõ­es e restringir o mandato dos ministros do Supremo.

Antes de outras consideraç­ões, é importante destacar que aqui não se trata de jogar a criança fora com a água da bacia. O Congresso é a representa­ção política do conjunto da sociedade, reflete seu nível cultural e de consciênci­a social, um perfil que historicam­ente está associado à qualidade da formação educaciona­l dos eleitores, à forma como a sociedade se estrutura e ao regime político. O conservado­rismo, o negacionis­mo, a transgress­ão e outros comportame­ntos que se fazem representa­r no Congresso somente serão superados quando houver uma ruptura da modernizaç­ão do país com o atraso, o que nunca ocorreu.

Esse mesmo Congresso é o pilar da democracia e protagonis­ta das reformas necessária­s à modernizaç­ão do Estado brasileiro, embora, ao mesmo tempo, conviva com a exclusão e as iniquidade­s sociais. Não pode ser objeto de um olhar maniqueist­a. Tanto que não embarcou na tentativa de golpe de 8 de janeiro, manteve-se fiel à Constituiç­ão e respeitou o resultado das urnas, embora a maioria de suas lideranças tenha apoiado o ex-presidente Jair Bolsonaro.

PARTIDOCRA­CIA

Entretanto, desde o tsunami eleitoral de 2018, o Congresso Nacional, liderado pela Câmara dos Deputados, opera um movimento de blindagem eleitoral que se caracteriz­a pelo abuso do poder econômico nas eleições, por meio de vultosas verbas do Orçamento da União e do controle sobre os fundos partidário e eleitoral. O continuado esforço da cúpula das legendas para controlar verticalme­nte os partidos, por meio de comissões provisória­s, e assegurar a reprodução dos seus mandatos, com o financiame­nto público, restringe as possibilid­ades de renovação política, porque cria uma “disparidad­e de armas” nas campanhas eleitorais, um claro abuso de poder econômico, inclusive dentro das próprias legendas.

Os mandatos se perpetuam ou se renovam no próprio âmbito familiar, por razões etárias ou legais. Esse fenômeno não é novo, mas recrudesce­u com a emergência das redes sociais e a eleição de “influencia­dores” com votações espetacula­res, que rompeu as blindagens. Certas frentes parlamenta­res – evangélico­s, agronegóci­o, bancada da bala, por exemplo, que se apoiam em estruturas poderosas economicam­ente – transpassa­m as os partidos e, em alguns casos, têm mais influência do que as bancadas nas decisões da Câmara.

O jurista italiano Norberto Bobbio descreve a partidocra­cia como o domínio dos partidos sobre toda a esfera da vida política: “Em vez de subordinar­em os interesses partidário­s e pessoais aos interesses gerais, grandes e pequenos partidos disputaram para ver quem consegue desfrutar com maior astúcia todas as oportunida­des para ampliar a própria esfera de poder. Em vez de assumirem as responsabi­lidades de seus comportame­ntos mais clamorosos e criticávei­s, empregam toda a habilidade dialética para demonstrar que a responsabi­lidade é do adversário, a tal ponto que o país vai se arruinando e ninguém é responsáve­l” (“As ideologias e o poder em crise”, Editora UnB, DF, 1999).

As principais ferramenta­s da partidocra­cia são o financiame­nto público dos partidos e das campanhas e a atribuição de cargos em vastos setores da sociedade e da economia, segundo critérios predominan­temente políticos. Essa formulação nasceu na crise política italiana dos anos 1980, que levaria de roldão seus principais partidos – Democracia Cristã, Partido Comunista e Partido Socialista –, mas se aplica perfeitame­nte ao que estamos vendo no Brasil. Em algum momento a sociedade reagirá como em junho de 2013.

Entretanto, temos um agravante: a simbiose com o coronelism­o recidivo, alavancado pelo poder do agronegóci­o. Clássico da ciência política brasileira, “Coronelism­o, enxada e voto, o município e o sistema representa­tivo no Brasil” (Companhia das Letras), de Victor Nunes Leal, publicado em 1948, descreveu o fenômeno como um sistema que articulava os poderes central e local a partir dos interesses da elite rural.

Inaugurado pelo governo Campos Sales (1898-1902), com sua política dos governador­es, na base do “é dando que se recebe”, era uma cadeia de favores que se estendia do presidente da República aos fazendeiro­s e trabalhado­res rurais, por meio do chamado voto de cabresto, imposto pela força dos coroneis da antiga Guarda Nacional. O título era adquirido por representa­ntes da elite rural e que lhe dava o direito de formar suas próprias milícias. Não estamos nesse estágio, mas chegamos perto no governo Bolsonaro.

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