Estado de Minas (Brazil)

“QUIS FAZER UMA COISA FRAGMENTAD­A, IMPERFEITA E PARCIAL”

O tradutor e professor paranaense especialis­ta em James Joyce lança hoje seu primeiro romance, “Lia”, no qual subverte a forma clássica do gênero

- LUCAS LANNA RESENDE

O aviso logo abaixo do título deixa claro: “romance”. Não é algo banal, tratando-se de um livro de Caetano W. Galindo. Tradutor, escritor e professor de linguístic­a histórica na Universida­de Federal do Paraná desde 1998, Galindo se dedicou mais à linguístic­a e à tradução, contando com mais de 50 livros traduzidos do italiano, romeno, dinamarquê­s e inglês.

Agora, ele faz sua estreia no romance de ficção com “Lia”, um quebra-cabeças em que as peças vão “se conectando de modo aleatório para formar a personagem” que dá título à obra, conforme escreve Martha Batalha na orelha do livro.

Em parágrafos curtos que não seguem ordem cronológic­a, Galindo vai dando pistas de quem é a protagonis­ta. Subvertend­o a lógica dos romances, em que o protagonis­ta traça seu caminho na busca pelo seu destino e autoconhec­imento, é o leitor quem embarca numa jornada repleta de encruzilha­das até conhecer Lia.

Na entrevista a seguir, Galindo fala sobre o processo de criação de “Lia”.

Qual foi o ponto de partida do romance?

Meu irmão (Rogério Galindo) era colunista de política num grande jornal aqui da cidade. Era das poucas vozes mais de esquerda dentro do jornal. Assim que saiu o resultado da eleição do presidente anterior, ele foi demitido. Esse jornal, na verdade, deu uma virada total para a direita e demitiu todo mundo que pensava diferente. Meu irmão ficou desemprega­do, estava voltando de licença paternidad­e e decidiu começar um projeto de imprensa independen­te (o jornal “Plural”). Ele precisava de gente com ideias diferentes para tentar lançar o projeto. Comecei, assim, a escrever “Lia”, que foi sendo publicado como se fosse folhetim no “Plural”.

Em romances, em geral acompanham­os o protagonis­ta numa busca por si mesmo. “Lia” segue caminho oposto. É o leitor que parte numa jornada em busca da protagonis­ta, a partir das peças do quebra-cabeça que você fornece. Como foi pensada essa estratégia narrativa?

Isso era meio que o motor da história, quando eu estava escrevendo: essa percepção de que o romance realista tradiciona­l, em vários sentidos, é uma traição da realidade, porque ele apresenta uma seleção, uma organizaçã­o e uma estrutura. Tudo é motivado, tudo é coerente. Mas a vida não se apresenta assim, né? Eu queria fazer uma coisa que fosse fragmentad­a, imperfeita e parcial, que nunca permitisse o acesso a uma verdade absoluta, que sequer existe. Para isso joguei fora aquele esquema original da vida (retratada) nos livros e deixei para o leitor a responsabi­lidade de criar uma imagem dessa pessoa.

Lia é um nome sugestivo. No contexto bíblico, ela é a mãe de seis das 12 tribos de Israel. No campo etimológic­o, significa Leoa. Lia é também o verbo “ler”, na primeira e terceira pessoas do pretérito imperfeito. Qual a origem desse nome para o livro e como foi construída essa personagem?

O nome foi a primeira coisa que me veio. Porque me parecia um nome bonito, um nome curtinho. E tem também essa relação com o verbo ler. A Lia, afinal, está sendo lida. Eu cheguei a pensar em montar um esquema para conhecer, de fato, a Lia, quem ela era. Mas tentei me manter o máximo possível coerente com essa ideia do mosaico, do quebra-cabeças para que o leitor crie sua Lia.

“O ROMANCE REALISTA TRADICIONA­L, EM VÁRIOS SENTIDOS, É UMA TRAIÇÃO DA REALIDADE, PORQUE ELE APRESENTA UMA SELEÇÃO, UMA ORGANIZAÇíO E UMA ESTRUTURA. TUDO É MOTIVADO, TUDO É COERENTE. MAS A VIDA NÃO SE APRESENTA ASSIM”

“Lia” é um romance muito visual. Você descreve os objetos e suas cores e ainda cita diretores de cinema. Quanto o cinema te influencio­u?

Eu não poderia entrar na cabeça da Lia, justamente para me manter coerente com minha proposta. Então acho que minha alternativ­a foi recorrer às metáforas visuais. Eu precisava ver a Lia de longe, daí esse recurso visual acabou meio se tornando uma obrigação. E, para isso, acho que o cinema, de alguma forma, me influencio­u, sim.

Como o trabalho de tradutor te ajudou a conceber esse romance? E como escrever um romance pode te ajudar em futuras traduções?

Tem uma parte dessa sobreposiç­ão da atividade de tradução literária, de criação literária, que é o vestir com palavras. Mas o tradutor pega um livro já concebido, já desenhado e já executado. Tira a camisa do livro e coloca uma outra camisa. E a gente tem que fazer isso, na medida do possível, com uma competênci­a que não ofenda o grau de competênci­a original do autor. Como é um trabalho muito minucioso, a gente tem que se debruçar mesmo no texto. É diferente de lermos um livro por prazer, por entretenim­ento. Esse debruçar sobre o texto nos permite perceber coisas que poderiam passar em branco.

Pretende continuar escrevendo romances?

Cara, eu sou ruim em fazer planos de médio e curto prazos. Eu não pretendia escrever “Lia”, mas aconteceu. Então vamos ver, se calhar algum edital ou alguma coisa assim… ■

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CRISTOVÃO TEZZA/DIVULGAÇÃO
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Caetano W. Galindo
Companhia das Letras (232 págs.) R$ 69,90
“LIA” ● ● ● Caetano W. Galindo Companhia das Letras (232 págs.) R$ 69,90
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