Estado de Minas (Brazil)

...A GUERRA CONTINUA

Perto de completar três décadas do genocídio, o medo e a inseguranç­a permanecem em Goma, com o conflito do M23, que obrigou 1,5 milhão de pessoas a saírem de suas casas

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Sentada em sua casa em Goma, no agitado leste da República Democrátic­a do Congo (RDC), Rachel Sematumba afirma sentir-se como uma "filha da guerra". À medida que se aproxima o 30º aniversári­o do genocídio em Ruanda, Rachel reflete sobre como a paz continua sendo um objetivo ilusório na cidade de Goma, assim como era quando ela nasceu.

"Desde o meu nascimento, no momento do genocídio em Ruanda, até hoje, com o M23 (milícia rebelde), só houve guerra em Goma", lamenta Sematumba.

No verão de 1994, quase 1 milhão de refugiados ruandeses de etnia hutu cruzaram a fronteira para Goma, capital da província de Kivu do Norte, na República Democrátic­a do Congo.

Temendo represália­s das novas autoridade­s em Kigali, deixaram um país traumatiza­do pelo genocídio.

Rachel nasceu em agosto daquele ano, quando "todos os hospitais da cidade estavam cheios de corpos", conta seu pai, Onesphore Sematumba.

A cólera era abundante e ceifou a vida de dezenas de milhares de refugiados e habitantes.

Agora, a poucos meses de completar 30 anos, Rachel está prestes a dar à luz o filho, previsto para 5 de abril, dois dias antes do início das recordaçõe­s do genocídio em Ruanda.

Em apenas 100 dias, entre abril e julho de 1994, morreram cerca de 800 mil membros da minoria tutsi e integrante­s moderados da maioria hutu, em massacres orquestrad­os e promovidos pelas autoridade­s.

Na época, com cerca de 30 anos, Onesphore era professor de literatura francesa em Ruanda quando o avião do presidente

‘‘Desde o meu nascimento, no momento do genocídio em Ruanda, até hoje, com o M23 (milícia rebelde), só houve guerra em Goma’’

Rachel Sematumba, moradora de Goma. Ela diz sentir-se uma “filha da guerra”

“Os refugiados cozinhavam ao lado de pessoas que morriam devido à negligênci­a geral. Vimos até bebês que se amamentava­m no cadáver da mãe”

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Onesphore Sematumba Pai de Raquel. Ele tinha 30 anos na época do genocídio

Juvenal Habyariman­a foi derrubado em 6 de abril. Em resposta, os extremista­s hutu desencadea­ram o último genocídio do século 20.

"Estávamos celebrando a Páscoa no Congo", lembra Onephore. "O ano letivo foi suspenso abruptamen­te, de um dia para o outro fiquei desemprega­do em Goma", acrescenta amargament­e.

INCURSÕES ARMADAS

Onesphore menciona uma "maré humana" que três meses depois passou de Ruanda para Goma.

"As crianças, os idosos, o gado, os tanques de guerra, os caminhões, todo o exército, o governo (…) metade do país foi para a cidade sem instalaçõe­s nem supervisão. Sem nada", diz. Goma tinha menos de 300 mil habitantes e "parecia uma grande aldeia", recorda.

Espaços abertos como campos de futebol, igrejas e escolas lotaram rapidament­e. Com a epidemia de cólera, "começamos a ver cadáveres se acumulando".

"Os refugiados cozinhavam ao lado de pessoas que morriam devido à negligênci­a geral. Vimos até bebês que se amamentava­m no cadáver da mãe", diz ele.

Onesphore se reuniria com exalunos que falavam sobre recuperar o poder em Kigali e realizar incursões armadas em Ruanda.

Mas foram Paul Kagame e a sua Frente Patriótica de Ruanda que detiveram os extremista­s hutu, entraram em Kigali em julho de 1994 e tomaram o poder, que ainda detêm.

FUTURO INCERTO

Durante 30 anos, o regime ruandês argumentou que a presença de extremista­s hutus em Kivu do Norte era uma ameaça que justificav­a a intervençã­o militar na RDC, seja de forma direta, seja por grupos rebeldes.

Guerras e conflitos ocorrem desde 1996, com o M23 – de maioria tutsi – no controle de grandes áreas em Kivu do Norte, incluindo os arredores de Goma, com o apoio do Exército ruandês.

Os rebeldes afirmam defender a população tutsi do Congo.

Rachel se lembra de correr para casa quando criança quando os tiros na cidade interrompe­ram suas brincadeir­as com os vizinhos.

A situação começou a se agravar, embora considere que a sua adolescênc­ia foi "normal", antes de acrescenta­r: "À medida que cresce, você se pergunta por que tudo isso aconteceu". As cenas que testemunho­u há 30 anos em Goma estão de volta com o conflito do M23, que obrigou 1,5 milhão de pessoas a emigrar das suas casas. No leste da RDC "é difícil sair do passado", diz o seu pai.

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ONESPHORE SEMATUMBA SEGURA UMA FOTOGRAFIA COM DUAS DE SUAS FILHAS, TIRADA ENTRE 1996 E 1997
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REFUGIADOS RUANDESES EM ACAMPAMENT­O IMPROVISAD­O, AO NORTE DA CIDADE DE GOMA, NO LESTE DO ZAIRE, EM 17 DE JULHO DE 1994
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ALEXIS HUGUET/AFP

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