Correspondência sem reciprocidade
Falta rigor crítico ao livro sobre as cartas trocadas por Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu
Osubtítulo de “Numa Hora Assim Escura” engana: “A Paixão Literária de Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst” sugere uma reciprocidade que não se materializa no conjunto de cartas publicado e comentado pela jornalista Paula Dip; são 22 do autor gaúcho para a escritora paulista e duas na mão contrária.
Também fica sem sustentação uma afirmativa como esta: “A intimidade com o texto fluido de Caio ampliaria o espectro da obra de Hilda...”. Se o afeto do autor de “Morangos Mofados” pela poeta e prosadora de “A Obscena Senhora D” é evidente nas missivas, é o de Paula Dip por Caio que mais sobressai.
A autora de “Para Sempre Teu, Caio F.” (2009), relato sentimental sobre sua correspondência e amizade com o escritor, volta a adotar um tom de veneração ao amigo morto em 1996, vítima da Aids.
“É claro que o fato de ter sido amiga do Caio me transforma numa pessoa especial”, escreveu na obra de 2009. Continua a crer nisso, mas, tratando agora de material que não a envolve diretamente e que exigiria algum rigor crítico, colhe resultados menos felizes.
O encontro de um Caio mal saído da adolescência com uma Hilda em fase de afirmação contracultural é um tema instigante. Em fins dos anos 1960, o jovem cabeludo - já com um romance terminado, “Limite Branco” - foi um dos artistas atraídos pela aura esotérica da Casa do Sol, onde a excêntrica escritora se recolhera em 1963.
HIPPIE
Depois de alguns meses de convivência próxima e turbulenta com a anfitriã, com quem compartilhava a paixão pelo ocultismo, Caio partiu para o Rio. Fiel ao espírito hippie do tempo e à sua arte, viveria no limite da precariedade em outras “comunidades” no Brasil e na Europa.
Nunca deixou de escrever para Hilda, como para nenhum de seus amigos. Talvez só perca para Mário de Andrade, de quem diferia no estilo rasgadamente confessional, como mais prolífico missivista da literatura brasileira. Escrevia cartas “freneticamente”, segundo Italo Moriconi, organizador do pioneiro volume “Cartas” (2002).
Naquele tijolo de 475 páginas, Moriconi incluiu oito missivas a Hilda, garimpadas no Centro de Documentação da Unicamp. Algumas, como a de dezembro de 1970 em que Caio relata um encontro com a “linda, profunda, estranha, perigosa” Clarice Lispector, são mais eloquentes do que as do lote de inéditas que Paula Dip comprou de um exnamorado de Hilda.
Apesar disso, essas cartas (que têm fac-símiles na edição) são o que há de mais substancial em “Numa Hora Assim Escura”. Especialmente para os apaixonados pela literatura de Caio ou os cultores do mito Caio, um autor que vai se tornando maior que a vida.
Mesmo os mais empolgados, contudo, podem achar indigestos trechos kitsch como este: “Como numa lenda da mitologia, escritores e semideuses, à sua maneira, cheios de virtudes e pecados, esses dois se reconheceram num par fatal e improvável que brindou a língua portuguesa com momentos de êxtase”.