Folha de Londrina

Confissões de um lava-louças

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Minha terapia é ter a pia cheia de louça para lavar. Lavo louças desde a primeira vez que morei em república, no final dos anos 80. Como eu não sabia cozinhar nem possuía qualquer outra habilidade manual, a louça era minha. Acabei aprendendo. Mal e mal sou formado em jornalismo, mas merecia ter um diploma de lava-louças. Continuo incompeten­te em vários segmentos: não sei dirigir, não sei cozinhar, não sei assobiar, não sei ganhar dinheiro. Mas, se tiver louça, deixa comigo.

Com o passar do tempo, você vai aprendendo que lavar louças também é uma arte (ou “ártchi”, como dizia uma famosa atriz em propaganda na televisão). A atividade exige paciência, capricho e apego aos detalhes. Um prato ou copo mal lavado é humilhante; um garfo mal lavado, quase um acinte. Em 1988, levei bronca de uma namorada e quase terminamos porque não eu havia lavado direito um copo de liquidific­ador. Até hoje, dedico-me com especial cuidado a esse item.

Outro dia, depois de lavar a louça do almoço, reli um poema de Adélia Prado, rainha da literatura brasileira: “Nesta hora da tarde quando a casa repousa a obra de minhas mãos é esta cozinha limpa. (...) Recupera meu corpo um modo de bondade a que me torna capaz de produzir um verso.” Se vale para a poesia, vale também para a crônica — gênero literário menor, porém limpinho. Lavar louças curiosamen­te lembra muito o ofício do cronista. Na coluna, como na pia, tento remover as impurezas. Meu desafio colocar em pratos limpos os fatos e ideias que muitas vezes estão ao nosso lado, mas ainda não haviam encontrado uma forma adequada de expressão. Assim como utilizo água e sabão para limpar a louça, procuro eliminar das palavras tudo aquilo que torna menos eficiente a

Como não tenho muitas habilidade­s manuais, a louça é minha!

comunicaçã­o entre a minha consciênci­a e a consciênci­a dos meus sete leitores. A visão de uma cozinha limpa é muito semelhante ao ponto final de uma crônica feita com sinceridad­e. Não é por acaso que muitas das coisas que escrevo aqui na Avenida Paraná terem sido pensadas na pia.

Mas nem só de crônica vive o lava-louça. Em minha longa carreira descobri que a lavação de pratos e copos combina com música. Meus três compositor­es de pia são Haydn, Mozart e o querido João Sebastião Bach. Mas às vezes eu gosto de cantarolar na cozinha as canções do meu amigo Chico Buraco.

Além disso, louça combina com reza. Quase todos os dias eu rezo pelo menos um terço na pia. A música das orações — PaiNosso, Ave-Maria, Glória — se harmoniza com a voz da água, com os pequenos sons do cotidiano. E a cada prato, a cada copo, a cada talher, a cada panela limpa eu me lembro dos seres amados que nunca deixam de habitar minha vida, purificand­o-a de todo rancor, de todo medo, de toda angústia. Lavar a louça também é conversar com Deus. Melhor terapia não há!

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