Folha de Londrina

A morte do indivíduo

- José Pio Martins JOSÉ PIO MARTINS é economista e reitor da Universida­de Positivo (UP)

Quando Nietzsche (1844-1900) escreveu, em 1882, a parábola do homem louco, que gritava em praça pública “Deus está morto! Nós o matamos!”, um terremoto de indignação se abateu sobre a multidão. O filósofo não proclamava seu próprio ateísmo, mas o espírito de sua época, em que a influência da religião na vida das pessoas era cada vez menor. A igreja, os mitos, os rituais, as ideias e a moral baseada na teologia vinham se enfraquece­ndo e desaparece­ndo. E Nietzsche, então, indagava: “Terá sido o homem um erro de Deus ou será Deus um erro dos homens?”.

Fazendo analogia com a história do indivíduo – essa entidade humana elevada à condição divina por Santo Agostinho (354430 d.C.), cuja vida devia ser colocada no centro do universo, protegida, respeitada e valorizada –, parece que estamos vivendo o dilema proposto por Nietzsche. Antes, o indivíduo era somente uma peça dessa engrenagem chamada “humanidade”, tratado como um simples animal, que quando não servia mais era desvaloriz­ado e abandonado para morrer. No tempo do Império Romano, crianças doentes e idosos inválidos eram deixados nas estradas frias para agonizar e morrer.

Que representa­ção do desvalor da vida é maior que cristãos lançados aos leões no Coliseu de Roma para diversão e euforia do povaréu? Santo Agostinho elevou o ser humano por acreditar que é um ser único, dotado de intelecto e uma alma imortal. Os liberais ingleses que lutaram contra o poder imperial e despótico dos reis defenderam que o indivíduo é o valor maior e deve estar acima do Estado. Margaret Thatcher disse: “Não conheço essa tal sociedade; eu conheço indivíduos”.

Mas, há exatos 100 anos, o regime comunista soviético retomou o desprezo pelo indivíduo, a ponto de um único ditador, Stalin, ter matado 20 milhões de pessoas desarmadas de seu próprio povo, em nome da prevalênci­a do coletivo sobre o indivíduo. Na engenharia comunista, uma das ideias era a de que os filhos não pertenciam aos pais, mas ao Estado, ao qual as crianças deveriam ser entregues. Era a coletiviza­ção do indivíduo.

Quando vejo uma mulher que é mãe defendendo o socialismo, pergunto o que ela sabe sobre a coletiviza­ção dos filhos. Não consigo conceber que uma única mãe neste mundo possa concordar com essa ideia tresloucad­a. Quanto às atrocidade­s de Stalin, quem as denunciou não foi nenhum liberal, mas um secretário-geral do Partido Comunista: Nikita Kruschev, no congresso comunista de 1956.

Esses exemplos pertencem à estratégia de reduzir o indivíduo a um animal descartáve­l, sem valor moral maior, cuja vida vale pouco. Digo isso a propósito da passividad­e com que a sociedade brasileira encara o fato de 60 mil pessoas morrerem assassinad­as por ano no País. “O indivíduo está morto!”, não no sentido físico, mas como entidade única, cuja morte violenta deveria indignar a todos. Mas os homicídios não indignam mais ninguém e foram incorporad­os à vida da nação.

Ouvi um folião do carnaval dizer, aos berros: “O Brasil é o país da paz e da alegria!”. Chamar de “o país da paz” um lugar onde 60 mil pessoas morrem assassinad­as a cada ano é decretar a morte do indivíduo como entidade de valor superior. Eu não valho nada, você não vale nada. Somos todos descartáve­is. Só nos cabe plagiar Nietzsche: “O indivíduo está morto! Nós o matamos!”, e rezemos para que não seja em nossa família que a próxima desgraça aconteça. Mas rezar para quem, se Deus também está morto? Triste país!

Chamar de “o país da paz” um lugar onde 60 mil pessoas morrem assassinad­as a cada ano é decretar a morte do indivíduo como entidade de valor superior

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil