Folha de Londrina

Tristeza que não se apaga

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Foi na instituiçã­o Nuselon, que acolhe crianças e adolescent­es em situação de risco em Londrina, que a dona de casa Karina Magalhães da Silva, de 22 anos, se sentiu pela primeira vez protegida. Ela foi retirada da família aos 11 anos porque sofria abuso sexual por parte do padastro. Conforme relatou, os abusos ocorriam desde que tinha cinco anos, mas apenas seis anos depois, após uma aula sobre o assunto na escola, é que ela se deu conta que poderia pedir ajuda.

“Cheguei em casa naquele dia e liguei para o 190 (Polícia Militar), mas me fizeram muitas perguntas que não soube responder. Então fugi e fui pedir ajuda no postinho de saúde”, recorda. O que aconteceu depois foi uma sucessão de episódios traumático­s como o registro da ocorrência na Delegacia da Mulher, exames e presenciar a mãe e o padastro sendo algemados. “Minha mãe sabia, mas ficava na dela”, conta. Desde esse dia, ela nunca mais teve contato com o abusador mas, há pouco tempo, voltou a se relaciotro nar com a mãe e o irmão. “Falo com eles, mas não tenho intimidade”, diz.

Após passar por atendiment­o de uma psicóloga e uma promotora, ela manifestou vontade de ir para o abrigo e foi atendida. “Algemaram meus pais, meu irmão chorava muito, mas fiquei com a consciênci­a limpa porque já tinha contado para a minha mãe e ela dizia que era normal, que tinham feito a mesma coisa com ela”, relata.

No abrigo, Karina conheceu a rotina e o respeito. “Ninguém me batia, eu não ficava de castigo e tinha comida à vontade. Com a minha família, nunca me davam nada, diziam que eu não merecia”, conta. Ela chegou a pedir para tirarem o nome do padrasto – que a registrou diante da morte do pai biológico quando ainda era bebê – da certidão de nascimento. “Mas disseram que ia demorar e teria que pagar... Acabei não indo atrás.”

Uma psicóloga que a atendia na adolescênc­ia chegou a perguntar se ela tinha vontade de ser adotada. “Na época disse que sim, eu pensava que seria mais feliz, que queria ser valorizada por uma família... Mas ela disse que se- ria difícil, por causa da minha idade. Então eu pensava pelo menos em ser independen­te”, recorda.

Karina nunca quis voltar a viver com a família ou mesmo parentes. “Tinha medo que eles me devolvesse­m para o meu padrasto”, diz. “Para mim foi melhor ficar no abrigo. Não tenho saudades da vida que eu levava.”

Aos 18 anos, ela deixou o Nuselon já empregada em um supermerca­do e foi morar com três amigas. Logo em seguida, acabou voltando para o distrito rural onde vivia a família de origem para cuidar do irmão doente. “Depois disso, fui morar com meu atual marido. Me casei faz dois meses”, conta ela, que considera os sogros como verdadeiro­s pais. “Eles me tratam muito bem e gostam de me ter por perto.”

Ela pensa em ter filhos e uma família diferente da própria experiênci­a, “com tudo que não pude ter”. “As pessoas dizem que sou forte, mas penso que superei 99% do trauma, a cicatriz fica para sempre. Essa é uma tristeza que não se apaga”, acredita.

(C.A.)

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Ricardo Chicarelli “Penso que superei 99% do trauma, a cicatriz fica para sempre”, afirma Karina Magalhães da Silva, que foi retirada da família porque sofria abusos e cresceu em um abrigo

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