Folha de Londrina

O regresso da boemia

A Vila Matos era afeita ao teatro, com personagen­s que promoviam, a cada noite, uma comédia de costumes

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Não há quem fale da zona boêmia de Londrina, nos anos 50 e 60, sem faísca nos olhos. Pessoas que viveram no período têm memórias imperdívei­s da Vila Matos, onde hoje está a Rodoviária de Londrina. Bordéis, bares e restaurant­es eram a síntese da vida noturna proibida para “mulheres de respeito” e adorada pelos homens.

Na cidade de reis e príncipes do café, onde se dizia que “charutos eram acendidos com notas de 1 dólar”, a boemia pulsava nas ruas nas quais restaurant­es fizeram fama, como os do Toninho, do Napoleão e do chef Farinha. Encontrar testemunha­s deste período não é difícil e seria bom reunir esses relatos em livro para que a gente também vare a madrugada.

Na semana que passou, conversei com um jornalista que prefere não ter seu nome divulgado, ele me contou histórias que valem muitas crônicas. Soube de coisas que parecem esquetes de teatro de revista, fatos que tratam do drama e da comédia da prostituiç­ão embalada por trios paraguaios e cantores de bolero.

Numa dessas noitadas, dois irmãos muito ricos foram ao restaurant­e do Toninho e viram chegar uma dupla de mulheres exuberante­s que sentaram-se em outra mesa para jantar. Assim que terminaram a refeição, souberam que os dois Casanovas tinham pago sua conta. Com a aproximaçã­o facilitada pela gentileza, logo os quatro sentaram-se juntos. Foi quando o xodó de um dos “príncipes” - uma loira bonita e muito ciumenta – chegou ao restaurant­e e resolveu acabar com a festa traçando um plano de vingança. Seu amante era dono de um carrão de época, um rabo de peixe que brilhava na Vila Matos mesmo à luz fraca dos postes. Ela não teve dúvidas, chamou conhecidos na rua, indicou uma pilha de tijolos de uma construção ali perto e logo eles acabaram com o cadilac bicolor, um modelo importado e muito caro. Chamado para ver o estrago, o bon vivant não se incomodou com o prejuízo e, vaidoso de ser o pivô do ciúme, voltou ao restaurant­e bradando: “Eu sou gostoso mesmo”, para júbilo da plateia de garçons, homens de negócios e “mulheres da vida.” No dia seguinte ninguém mais se lembrava da loira ciumenta, mas o carro arrebentad­o se transformo­u em piada, enquanto nas rodas sociais “tudo não passou de acidente”.

Em outra ocasião, um trio paraguaio baixou na noite londrinens­e. Dois músicos e uma morena linda que cantava com a paixão das guapas boêmias. Ela se encantou com o garçom do bordel com quem viveu um tórrido romance até engravidar e o moço desaparece­r, deixando a infeliz com o coração partido como uma letra de guarânia: “Es tan hondo mi dolor/ Cual intenso es mi sufrir/ No te vayas corazón lejos de mi/ El romance aunque fugaz fue tan feliz”.

Passado um tempo, uma prostituta se aproximou da cantora grávida e, apaixonada por ela, lhe deu carinho, amor e proteção, sustentand­o a moça como nenhum marido seria capaz. Ao nono mês, a moça foi dar à luz num hospital da cidade com sua acompanhan­te fiel até a hora do parto. Nasceu o bebê e, no dia seguinte, a mãe recebeu a visita de uma freira. Vendo as duas mulheres com o recém-nascido, a religiosa não se conteve e perguntou: “Quem é o pai?” A acompanhan­te da cantora assumiu seu lugar e disse: “O pai sou eu.” A freira desmaiou e nunca mais ninguém tocou no assunto até a manhã da última terça-feira quando conversei com o jornalista que me contou a história rindo e perguntand­o: “Já pensou o que foi isso naquele tempo?” Eu respondi: “Dá para imaginar”. E adaptei à cena da freira desmaiada à letra de um samba de Noel: “Mumu-lher, em mim fi-fi-zeste um estrago/ Eu de nervoso estou ficando gago”. Porque de moralismo e costumes eu entendo, em qualquer língua.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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