Folha de Londrina

Para viver melhor

Pesquisado­ra desenvolve trabalho de resgate cultural e preservaçã­o histórica tendo como ponto de partida o Cemitério Municipal São Francisco de Paula, em Curitiba

- Magaléa Mazziotti Reportagem Local

Uma relações públicas da “necrópole dos vivos”. A graduação da pesquisado­ra, idealizado­ra das visitas guiadas ao Cemitério São Francisco de Paula de Curitiba e presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriai­s (Abec), Clarissa Grassi, serviu de ponto de partida para uma trajetória de resgate e preservaçã­o histórica e cultural da Curitiba póstuma. Tudo começou com a missão de produzir um material institucio­nal para uma funerária, ainda como relações públicas. De lá para cá são 14 anos de estudos, três livros publicados, uma dissertaçã­o de mestrado e, desde 2014, a democratiz­ação de todo esse conhecimen­to por meio do serviço oferecido ao público que visita o cemitério mais antigo da capital.

“As visitas guiadas são a realização de um sonho após tantos anos de pesquisa. Acredito que elas são um poderoso instrument­o para desmistifi­car a morte, valorizar a vida e garantir a preservaçã­o desses espaços, sabidament­e vandalizad­os”, defende Clarissa. “Não existe patrimônio sem pertença. De maneira indireta, todos que participam de uma visita guiada se dão conta de que vão morrer e por isso mesmo podem investir melhor o tempo que possuem. Além disso, eles criam laços com a preservaçã­o desse espaço a partir do conhecimen­to sobre as histórias de quem aqui foi enterrado, bem como da riqueza artística e cultural encontrada nos milhares de túmulos do Cemitério São Francisco de Paula”, aponta.

Como bem definiu Clarissa no título de sua dissertaçã­o de mestrado – Cidade dos mortos, necrópole dos vivos: a Curitiba do Cemitério São Francisco de Paula – , espaço de 51.414m², com 139 quadras, 5.743 túmulos e mais de 80 mil sepultamen­tos realizados reúne um acervo impossível de ser visitado em um único passeio. A solução foi organizar uma visita geral e outra temática por mês para dar conta de tanta história.

“Embora o cemitério reverbere todas as mudanças da sociedade, as transforma­ções na cidade dos mortos se dá de uma forma mais lenta. O Paranismo é um bom exemplo. Enquanto em vários jazigos ou mausoléus daqui é possível encontrar os ícones do movimento cultural, a sede do movimento não existe mais na cidade, foi demolida”, explica.

A próxima visita temática será no dia 13 de maio, das 9h às 12h, e resgatará a histórias dos negros enterrados. “A Enedina Alves Marques, primeira engenheira mulher e negra, tem uma história que não pode ser esquecida. Ela, assim como tantos ou- tros que pesquisei, representa­m uma das partes mais fascinante­s desse trabalho que é conhecer o triunfo do homem sobre as condições adversas de um determinad­o tempo. Isso não pode ser perdido”, enfatiza.

Clarissa também recomenda aos visitantes reservarem um tempo para circularem pelo local sem guia. “Não existe conhecer tudo. O que vejo aqui dentro é o que meu olhar está disposto a conhecer naquele dia e acho que todo mundo pode ter uma experiênci­a riquíssima ao se permitir perambular pela cidade dos mortos”.

MEMÓRIA

A pesquisado­ra fala com propriedad­e ao propor uma relação menos traumática com a morte, já que sua primeira memória em um cemitério foi aos 8 anos de idade, quando faleceu sua avó Clara Isabel Neumann Grassi. “Ela ficou nove meses de cama e todo o processo de doença e morte foi abordado com muita naturalida­de pela minha mãe. Acho que isso ajudou. Tanto que lembro exatamente do dia, da tristeza que senti misturada a uma serenidade que sempre encontrei nos cemitérios”, descreve Clarissa, complement­ando que o túmulo da avó dela está no São Francisco de Paula.

Clarissa, no entanto, defende integralme­nte a importânci­a de se permitir viver o luto e sentir toda a dor do momento. “As pessoas não sabem mais elaborar o luto, procuram calmantes e acho que isso pode ter consequênc­ias na frente com doenças como depressão”, observa.

Ciente de que a morte “é o que de mais inevitável existe”, ela transforma essa certeza em uma ferramenta para “viver melhor”. Apesar do fascínio por arte tumular e conviver com tantas construçõe­s suntuosas espalhadas pelo Cemitério São Francisco de Paula, Clarissa não nutre qualquer aspiração pelo local onde ficarão seus restos mortais. “Aos meus familiares sempre falo que quero a escolha mais barata”, explica.

Incansável e devota feito uma guardiã da memória da cidade póstuma, Clarissa que desde o início do ano foi chamada para trabalhar como pesquisado­ra no Departamen­to de Patrimônio Cultural de Curitiba - tem planos de conseguir estender as visitas guiadas a outros cemitérios e concluir um levantamen­to sobre todos os túmulos do Cemitério São Francisco de Paula, a fim de que a lei municipal de tombamento enfim seja aplicada.

“A morte é o deixar de ser. Passadas algumas gerações, os laços afetivos desaparece­m e você deixa de existir para a família. Daí a importânci­a da preservaçã­o histórica, para não perdermos a memória de nossos antepassad­os”, observa.

Embora o cemitério reverbere todas as mudanças da sociedade, as transforma­ções na cidade dos mortos se dá de uma forma mais lenta”

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Edgard Marques /Divulgação “A morte é o deixar de ser. Passadas algumas gerações, os laços afetivos desaparece­m e você deixa de existir para a família. Daí a importânci­a da preservaçã­o histórica”, diz Clarissa Grassi

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