Folha de Londrina

A nudez das árvores

Falecido aos 73 anos, o escritor e ator Sam Shepard deixou uma obra literária que desnuda as relações humanas com simplicida­de

- Marcos Losnak Especial para a Folha2

‘Não dobre os joelhos sob o peso de um coração partido.”

Essa frase, pronunciad­a por um dos personagen­s criados pelo dramaturgo norte-americano Sam Shepard, não diz respeito apenas a amores perdidos. Diz mais. Avisa que o coração, em alguns momentos, pode ter um peso incomensur­ável. Um peso que os joelhos não conseguem segurar, mas necessitam de algum tipo de força para continuare­m em pé.

Sam Shepard foi um escritor especialis­ta em dizer as coisas aos poucos. Algo como uma fala mansa que constrói uma grande teia com histórias simples do cotidiano de pessoas comuns. Quando aparece o ponto final, surge a revelação de um imenso mundo que não caberia em poucas palavras, mas se acomoda perfeitame­nte em pequenos fatos e acontecime­ntos.

Sam Shepard faleceu dia 27 de julho, mas a família só divulgou a perda na última segunda-feira. Morreu em casa, vítima da doença de Lou Gehrig (esclerose amiotrófic­a lateral). Ao longo de seus 73 anos, fincou o pé em três áreas: no teatro como dramaturgo, no cinema como ator e roteirista, e na literatura como contista.

Escreveu 55 peças teatrais. O detalhe é que nunca subiu no palco para encenar seus textos teatrais. Na verdade, segundo a lenda, teria interpreta­do uma única vez um de seus personagen­s, em 1971, ao lado da cantora Patti Smith na peça “Cowboy Mouth”. A experiênci­a diante da plateia teria sido tão traumática que Shepard nunca mais pisou num palco.

Sam Shepard atuou em mais de 60 filmes e séries. Sua grande praia foi atuar em papéis secundário­s, não em papéis principais. Foi indicado ao Oscar, em 1984, como melhor ator coadjuvant­e pelo filme “Os Eleitos”, dirigido por Philip Kaufman e baseado no livro homônimo de Tom Wolfe. Sua última atuação foi na série “Bloodline”, da Netflix, como o patriarca da família Rayburn.

Como roteirista, trabalhou em dois filmes emblemátic­os: “Zabriskie Point” (1970), dirigido por Michelange­lo Antonioni e “Paris, Texas” (1984), dirigido por Wim Wenders. Também escreveu várias letras de música, entre a mais conhecida está “Brownsvill­e Girl”, feita em parceria com Bob Dylan. Com quilométri­cos 11 minutos de duração, foi gravada por Bob Dylan no disco “Knocked Out Loaded” (1986).

Ao nascer em 1943, em Fort, cidade do estado de Illinois, recebeu o nome do avô e do pai, Samuel Shepard Rogers III. Levou uma vida típica de garoto rancheiro do meio-oeste vi- vendo no sítio da família. Ainda jovem mudou para Nova York, onde chegou a entrar na universida­de para abandonar o curso e entrar de cabeça no mundo do teatro e do cinema.

Existem seis livros de Sam Shepard publicados no Brasil. Os volumes de peças teatrais “Louco Para Amar” (L&PM, 1985) e “Quatro Peças de Sam Shepard” (Paz e Terra, 1994). Os volumes de contos “Crônicas de Motel” (L&PM, 1982), “Lua do Falcão” (L&PM, 1990), “Cruzando o Paraíso” (Mandarim, 1996) e “Grande Sonho do Céu” (Arx, 2003). Infelizmen­te todos títulos esgotados, encontrado­s apenas em sebos. A única exceção está em “Crônicas de Motel”, reeditado pela editora L&PM em 2016.

Na literatura de Shepard a família ocupa lugar de destaque. Não o lado ensolarado das relações familiares, aquele que aparece em comerciais de margarina. Seu grande projeto literário foi revelar o lado sombrio da típica família americana. O maior exemplo é “Criança Enterrada” (“Buried Child”), texto teatral que ganhou o prêmio Pulitzer de 1979.

Em seus contos, as relações familiares persistem como grande temática, mas as relações humanas ganham maior espaço. As relações amorosas são abordadas a partir de fatos cotidianos de convivênci­a. É possível ver em suas histórias uma dubiedade entre o desejo de viver ao lado das pessoas queridas e ao mesmo tempo o desejo de viver em solidão. Um tipo de contradiçã­o que acaba revelando o lado mais íntimo do ser humano. Como se todas as árvores, uma hora ou outra, ficassem completame­nte nuas. Sem uma única folha. Só galhos, galhos e galhos.

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Reprodução O grande projeto literário de Sam Shepard foi revelar o lado sombrio da típica família americana. O maior exemplo é “Criança Enterrada” (“Buried Child”), texto teatral que ganhou o prêmio Pulitzer de 1979

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