Folha de Londrina

Vivendo um falso amor

O relacionam­ento abusivo, muitas vezes, é revestido pela ideia de cuidado e afeto; compartilh­ar experiênci­as é uma alternativ­a para transforma­r essa realidade

- Micaela Orikasa Reportagem Local

Claudia (nome fictício), 34, aprendeu que a dor precisa ser compartilh­ada e que ela merece viver um amor verdadeiro. Há meses, ela tem saído de casa uma vez por semana para ir aos encontros do Mada (Mulheres que Amam Demais Anônimas), em Londrina. Junto com outras mulheres, ela ganha força e o entendimen­to de que não é responsáve­l por “salvar” o casamento. Claudia vive um relacionam­ento abusivo há anos, mas foi somente na segunda união que ela se identifico­u nessa condição e conseguiu buscar ajuda.

“Meu marido era usuário de crack e toda vez que ele estava sob efeito, a culpa era minha. Ele me manipulava a ponto de eu realmente me sentir culpada por tudo de ruim que acontecia com ele. Eu não conseguia sair daquela relação porque lembrava do primeiro casamento e achava que tinha que salvar esse”, comenta.

O relato de Mariana (nome fictício) também tem contornos semelhante­s. Ela se submetia a certas situações, como manter relações sexuais para não perder o companheir­o. “Pois ele dizia que iria procurar outra. Então, eu fazia de tudo para conquistá-lo. Perdi minha autoestima e achava que merecia tudo aquilo que estava vivendo. E isso era um padrão. Em toda relação eu me entregava totalmente, me apaixonava perdidamen­te e sofria muito”, revela.

Essas duas histórias, felizmente, estão tomando outros rumos porque ambas encontrara­m uma rede de apoio no Mada. Claudia segue casada, pois o marido está em tratamento contra a dependênci­a química há um ano. “Hoje eu tenho consciênci­a sobre os meus limites; e com o grupo e a terapia sei o quanto estou fortalecid­a para conseguir viver sem ele caso tenha uma recaída ou se torne abusivo novamente”, diz.

Já Mariana cortou qualquer relação com o “companheir­o” e comemora a nova fase. “Não estou em nenhum relacionam­ento agora, mas me sinto mais segura. Sei que não preciso me sacrificar para conquistar ninguém”, conta.

A coordenado­ra do Mada em Londrina, Sarah Carvalho, abriu o grupo em outubro de 2016, o que possibilit­ou já ajudar mais de 20 mulheres. Os encontros são semanais, sem custo e abertos para aquelas que se identifica­m com o tema.

O grupo é um braço do Mada Brasil e é estruturad­o com 12 passos, como acontece no AA (Alcóolicos Anônimos), porém, o objetivo é atender mulheres que vivem relacionam­entos destrutivo­s. “Por ser um grupo de espelho, não podemos dar conselhos durante as reuniões. A ideia é uma escutar a outra como uma troca de experiênci­as e espaço para desabafo. Com isso, aprendemos a nos conhecer e descobrir o porquê de algumas escolhas”, ressalta. dificuldad­e em um relacionam­ento abusivo é a pessoa se identifica­r nessa condição. “Muitas vezes, o abuso é silencioso, sutil. Então, a mulher começa a ser cerceada de seus direitos, como visitar familiares, ter amigos ou mesmo vestir certas roupas, travestido pela noção de cuidado, de amor”, aponta.

Ela destaca que cada casal tem o seu arranjo, sua dinâmica e que por isso, não há nenhum problema quando algumas escolhas são pactuadas, ou seja, de comum acordo, deliberada por ambas partes.

Fernanda de Mello Nogueira, psicóloga que também atua no CAM, acrescenta que nos relacionam­entos abusivos há sempre uma assimetria de poder. “Esse é um aspecto importante que ajuda a identifica­r tal condição. Nenhum relacionam­ento violento começa com um tapa na cara. As coisas começam através de um controle, de um isolamento”, afirma.

As profission­ais destacam ainda que os abusos que se dão nos relacionam­entos independem de gênero e vínculo existente. Entretanto, historicam­ente, as mulheres são a maior parte das vítimas.

Dados do Ligue 180 da SPM (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres) de 2015 revelam que dos 76.651 relatos registrado­s, 50,15% eram violência física; 30,33% psicológic­a; 7,25% moral; 5,17% cárcere privado e 4,54% sexual.

Ainda de acordo com o levantamen­to, em 72% dos casos as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo, sendo companheir­os atuais ou ex, cônjuges, namorados ou amantes.

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Cláudia (nome fictício), que contou um pouco de sua história no início da matéria, vive hoje uma relação saudável. E ela atribui essa “transforma­ção” ao fato de ter conversado com outras mulheres na mesma condição, por meio de um grupo de apoio. “Foi um alívio. Falar sobre essa dor e ver que o seu caso não é isolado é como receber um abraço. Você passa a enxergar de verdade, uma luz no fim do túnel”, descreve.

A psicóloga Mirtes Menezes ressalta que conversar com alguém de referência, seja na família, na amizade ou na religião, é o primeiro passo para construir esse fortalecim­ento. Com isso, a mulher vai se aproximand­o também de uma ajuda profission­al, seja individual ou em grupo.

Nas redes sociais, a união entre mulheres vem crescendo por meio de grupos de apoio, fortalecen­do a ideia da “sororidade”, termo semeado no universo virtual que exprime uma aliança entre mulheres baseada na empatia e companheir­ismo.

De acordo com a psicóloga, os grupos são um ótimo caminho para ajudá-las a se sentirem solidariza­das, o que minimiza qualquer sentimento que possam ter desenvolvi­do de culpa ou inferiorid­ade. “Pois em um relacionam­ento abusivo vai sendo minada a percepção de direito, de que é possível estar em outra condição. Além disso, a autoestima é zerada, assim como o sentimento de autocompet­ência”, destaca.

A psicóloga Fernanda de Mello Nogueira acrescenta ainda que chegar a um momento de empoderame­nto pode ser um longo caminho. “Pensando nisso, os grupos nas redes sociais sobre relacionam­entos abusivos são ferramenta­s muito importante­s. O acesso é facilitado e há muito conteúdo esclareced­or, educativo e acolhedor”, conclui. (M.O.)

ASSIMETRIA DE PODER A psicóloga Mirtes Viviani Menezes, que atua há nove anos no CAM (Centro de Referência Especializ­ado de Atendiment­o à Mulher) em Londrina, afirma que uma grande

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Saulo Ohara Mirtes Viviani Menezes e Fernanda de Mello Nogueira, psicólogas do CAM

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