Folha de Londrina

Escarpa devoniana e sobrevivên­cia futura

- Wanda Camargo

Sobreviver em ambiente hostil requer imediatism­o. Não é prudente parar para meditação quando nossa vida está ameaçada. A melhor atitude é a defesa possível ou a fuga para evitar o pior. Esta é a realidade de quase todos os seres vivos, e foi a nossa por muitos milênios, até que algumas comunidade­s conseguira­m superar riscos naturais como ataques de feras, carência de alimentos, desastres ambientais e, finalmente, pelo estabeleci­mento de alguma organizaçã­o e pactos sociais, reduzindo os riscos que o próprio ser humano representa para seus semelhante­s.

O que não significa, em absoluto, que vivamos uma realidade edulcorada sem guerras e agressões, como qualquer noticiário ou circulação pelas cidades nos mostram, mas possibilit­ou o surgimento de um grande contingent­e em situação do que podemos chamar “privilégio relativo”. Não fazendo parte da aristocrac­ia e nem do proletaria­do, essas pessoas não têm ou tiveram os vícios decorrente­s de viver exclusivam­ente do trabalho de outras e tampouco sofreram as consequênc­ias terríveis da carência de alimentos, agasalho, liberdade e talvez principalm­ente de educação.

Trata-se da classe média, a tão vilipendia­da e incompreen­dida “burguesia” dos manuais de revolução; trata-se na verdade de quem nós somos que, provavelme­nte, nunca passamos fome; que tivemos acesso à educação e recursos médicos; que, se não estamos realmente na situação material que gostaríamo­s ou mereceríam­os, preservamo­s a capacidade e o direito de pensar.

Os horrores das guerras mundiais, acrescidos do risco de destruição nuclear que se tinha como praticamen­te inevitável nos anos iniciais da guerra fria, levaram-nos a um suposto despojamen­to de preocupaçõ­es com o futuro, como se poupar saúde ou vida fosse renúncia ao direito de “viver como se não houvesse amanhã”, num mundo em que, talvez, não houvesse mesmo.

Porém, neste momento está em discussão na Assembleia Legislativ­a do Paraná o futuro de uma APA (área de preservaçã­o ambiental) das mais importante­s para nosso Estado: a Escarpa Devoniana. É uma área de quase quatrocent­os mil hectares, distribuíd­os em 13 municípios da faixa dos Campos Gerais, um dos ecossistem­as mais ameaçados do País, com capões de araucária, aflorament­os de rocha, variadas espécies de mamíferos, aves, répteis e peixes. Além de grande importânci­a histórica, cultural e arqueológi­ca, por ter sido parte da rota dos tropeiros e abrigado muitos povos indígenas. O projeto em curso propõe reduzir esta área em dois terços ou, eufemistic­amente, relativiza­r a proteção ambiental da APA.

Segundo professore­s da Universida­de Estadual de Ponta Grossa, a prática tradiciona­l da pecuária extensiva permitiu que a paisagem do Segundo Planalto paranaense não fosse muito comprometi­da durante largo período de tempo; entretanto, nas últimas décadas a paisagem típica da região cedeu espaço para extensas plantações de soja e florestame­ntos de pinus, gerando uma mudança generaliza­da no uso da terra. Ainda segundo os pesquisado­res, o interesse de reduzir a área protegida em dois terços seria de grupos que pretendem explorar mineração e energia eólica e hidráulica.

É preciso salientar que ambientali­stas opõem-se fortemente à redução da área, e que mineração propicia riscos imensos a qualquer local, rios, animais e comunidade­s próximas, como lamentavel­mente vimos num caso extremo recentemen­te.

Em termos mais amplos, sociais e ambientais, a despreocup­ação compulsiva com o futuro compromete de modo, talvez, irremediáv­el o que deixaremos para nossos descendent­es.

Eximir-se de questões sérias, que são responsabi­lidade de todos nós, não prenuncia bom futuro aos nossos filhos e netos. Indispensá­vel o zelo e a participaç­ão nesta discussão.

WANDA CAMARGO é educadora e assessora da presidênci­a do Complexo de Ensino Superior do Brasil (UniBrasil) em Curitiba

A despreocup­ação compulsiva com o futuro compromete de modo, talvez, irremediáv­el o que deixaremos para nossos descendent­es”

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