Folha de Londrina

Vida e obra

Parece que as pessoas vivem em dois planos de cultura, um para a vida, outro para a escola

-

Fernanda Montenegro comemora 70 anos de carreira com a leitura dramática “Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo”, que será apresentad­a no Filo na segunda e terça-feira, no Teatro Ouro Verde. O espetáculo reúne trechos de crônicas e entrevista­s organizado­s pela filha do dramaturgo, cuja obra está mais viva do que nunca

Numa viagem de ônibus ouvi a conversa de dois estudantes de Direito. De cinco em cinco minutos um dizia ao outro: “Carai,véio”! Pensei no futuro, imaginando os dois num tribunal, defendendo seus clientes e deixando escapar ao juiz: “Carai, véio!”

Ainda estranho o encolhimen­to da língua, a abreviação de tudo, e isso não tem nada a ver com preconceit­o, mas com a observação de que o diálogo empobrece ficando limitado a um repertório de uma dúzia de expressões por horas a fio. No ônibus, a conversa dos estudantes não evoluiu muito além disso em 6 horas de viagem.

Quando argumento sobre isso meus filhos estranham, acham que rejeito a “fala popular” buscando os padrões que,segundo eles, são impostos pela elite. Tento contra argumentar dizendo que nada tenho contra a elite cultural que, por sua vez, nada tem a ver com a elite econômica à qual, por sinal, muitos intelectua­is fazem oposição. Mesmo assim parece que observaçõe­s sobre a linguagem passam hoje por um crivo que não deixa de ser parte do “politicame­nte correto” que sem querer admitir tudo também tudo admite para não contrariar princípios que no fim passam da defesa da massa para a massificaç­ão.

O uso corrente de palavras pela metade faz parte da utilização contínua da internet, na qual a simultanei­dade leva à pressa de falar sobre tudo em códigos. Muitas escolas não consideram isso um problema, tendo em vista que apesar da linguagem cifrada o uso da internet tem dado bons resultados. Segundo as pesquisas, os jovens se expressam melhor pelo hábito de terem longos batepapos onde exercitam a “sua língua” com o uso de abreviaçõe­s, isso daria à conversa uma aparência de diálogo em tempo real, tendo em vista que não se escreve tão rápido quanto se fala. Ao mesmo tempo, as escolas não permitem o uso do internetês nas provas, prevalecen­do a linguagem padrão. Neste caso, parece que as pessoas vivem em dois planos de cultura, um para a vida, outro para a escola, mas se os especialis­tas dizem que isso não é problema, quem sou para problemati­zar.

Na outra ponta da educação, existe sim uma preocupaçã­o não com a abreviação das palavras, mas com os erros de ortografia que acompanham o processo. É comum encontrar na internet palavras como “resolvel”, “intão” e “considerá”, sem contar aquela vontade profunda de “matar ela.” Mas neste caso, segundo alguns educadores, o problema não é exatamente da internet, ela seria apenas “cúmplice do crime.”

O problema, segundo eles, seria resolvido com mais leitura de jornais, revistas e livros. Mas sabemos que as novas gerações não têm muito interesse além da telinha, a não ser que o incetivo à leitura continue a fazer gols como aqui em Londrina, onde pesquisa revela que o projeto Palavras Andantes - iniciativa da rede pública de ensino através das Biblioteca­s Escolares que está completand­o 15 anos - fez saltar o índice de leitura das crianças para quatro livros em média por mês, o que é muito maior do que outros índices do país.

Tudo indica que o caminho da preservaçã­o da leitura e da língua sem erros crassos passa por iniciativa­s que oferecem outras atividades – como horas do conto, criação e interpreta­ção de textos - além do tempo passado diante das telas do computador que é apenas “cúmplice dos crimes”.

Mais do que o meio, o que importa é o conteúdo que se oferece às crianças para que elas não cresçam pensando que toda comunicaçã­o se resolve com um “carai, véio!”

De minha parte, apesar do senso crítico, me divirto com a criativida­de juvenil capaz de criar expressões como blz (beleza), fmz (firmeza), xou xiqui (sou chique) e outras derrapadas. Em todo caso, escrever bem e conhecer a língua continua sendo importante e isso está muito além da criação da identidade de grupos a partir da linguagem. Como ensinava Stanislaw Ponte Preta: “Quem gosta de doce de coco sabe a importânci­a de um circunflex­o.”

(Anônimo)

 ?? Sanny Soares/Filo ??
Sanny Soares/Filo
 ?? Ilustração: Marco Jacobsen ??
Ilustração: Marco Jacobsen

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil