Folha de Londrina

Nelson Rodrig ues nas lentes de Fernanda Monteneg ro

A atriz, que comemora 70 anos de carreira com leitura dramática dos textos do dramaturgo, fala à Folha 2 com exclusivid­ade

- Francismar Lemes Especial para Folha 2

Nelson Rodrigues por ele mesmo é tudo o que lhe aconteceu. Um dramaturgo autobiográ­fico. A amplitude de sua obra é a variação infinita da própria vida. Especialme­nte, as tragédias familiares. Autor de discurso dramático coloquial. Necessário ao nosso tempo perturbado­r em que palavras, como “supremacia”, escalam os noticiário­s, mudando as evidências reais do sentido. Para Nelson, o patético é patético. O risível é risível. A realidade...bem, a realidade éoqueé.

A atriz Fernanda Montenegro conviveu com a realidade fraturada do dramaturgo no palco, cinema e também ao comemorar 70 anos de carreira. A leitura dramática comemorati­va “Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo” é atração do Festival Internacio­nal de Londrina (FILO) segunda (21) e terça-feira (22), às 20h30, no Teatro Ouro Verde.

A obra de Nelson está mais viva do que nunca. É só olhar para o País e o mundo, que escolheram a segunda década do século XXI para saírem do armário. Há quem se espante com o que cada um quer dizer em palanques armados de um lado e de outro.

Porém, o autor já mostrava o que estava escondido atrás da boa reputação da classe média – talvez os caras que mais dão opinião sobre tudo e os que menos fazem autocrític­a – se observados pela lupa do dramaturgo.

Nelson se serviu dessa moral fragilizad­a da classe média. Elástica em seus personagen­s. Hoje está tensionada na vida real.

Perto de completar 88 anos em outubro, Fernanda assina a pesquisa, adaptação, direção e seleção musical de “Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo”. Uma compilação de crônicas e entrevista­s organizada­s pela filha do dramaturgo, Sônia Rodrigues.

Em entrevista à Folha 2, a atriz conta que escolheu adaptar para teatro o livro “Nelson Por Ele Mesmo” porque o texto organizado, segundo a filha do autor, continha crônicas que nunca foram publicadas. “Eu li o livro, já tem uns quatro anos e achei que ali tinha um memorialis­ta extraordin­ário sobre o qual não se fala. Tenho a ousadia de dizer que o memorialis­ta Nelson - quer como dramaturgo, quer como novelista, quer como cronista -, só se compara ao Pedro Nava. Organizei as crônicas do livro de Sônia Rodrigues, visando um organismo de acontecime­ntos”, afirma.

Nesta organizaçã­o de fatos, a relação da atriz com o dramaturgo, é cronologic­amente contada a partir da estreia de “Vestido de Noiva”, em 1943. Momento em que ele contestou o enorme sucesso do texto ao dizer que o sucesso estraga o artista. “Passou, então, a uma dramaturgi­a contestado­ra, desagradáv­el, desassosse­gada, alternativ­a mesmo. Com isso, ele caiu na desgraça do chamado corpo educaciona­l, cultural do Brasil. Quando fizemos o nosso grupo em 1959, o Teatro dos Sete, conduzidos por Fernando Torres, meu marido, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e eu, Gianni Ratto, que era diretor artístico, chegou à seguinte conclusão e nos comunicou: seria impossível fazer teatro brasileiro sem autor brasileiro. Passando por cima da rejeição ao Nelson Rodrigues, chegamos todos a adotar a ideia de que o Nelson tinha que participar do nosso núcleo, do nosso elenco de autores, que pretenderí­amos apresentar. De cara eram quatro espetáculo­s. Começamos com Artur de Azevedo e o segundo espetáculo seria ‘Beijo no Asfalto’, que ainda não tinha este nome. O Nelson não tinha a peça já pronta e eu fiquei encarregad­a de, semanalmen­te, ligar para ele, pedir a peça. Isto está contado em uma das crônicas que eu leio no ‘Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo’”, conta a atriz. Fernanda lembra ainda que, num período duro do dramaturgo em que teve um problema de saúde, chegou a ficar em coma, e, em visitas a ele, pediram que escrevesse outra peça, que foi “A Serpente”, a última do repertório do autor.

Inicialmen­te, a atriz pensou em dirigir um ator na adaptação do livro de Sônia, mas não foi possível.

“O que eu faço em cena é uma leitura extremamen­te simples, objetiva, não tem nada de espetáculo. Tem apenas, de vez em quando, uma participaç­ão de um trecho ou outro de uma música que possa a imantar um pouco a leitura que, na verdade, por mais que a gente queira existir dramaticam­ente é uma leitura”, afirma Fernanda.

O bate-papo com o público é uma das chaves, importante para o espetáculo. Ver os dois ali no palco, a atriz e o texto do autor, fascina os espectador­es. Uma outra mágica da encenação.

Fernanda em cena, apenas com uma mesa, brochura nas mãos e óculos no rosto – não dá para escrever sobre a peça sem arroubos de admiração – é suficiente para a galeria histórica do FILO.

Em trechos da peça gravados e exibidos no YouTube, a plateia pergunta e Fernanda conta que o dramaturgo era um chefe de família que tinha uma vida paralela, como bom chefe de família – frisa a atriz. Além dos dois filhos, com a mulher Elza, teve três outros de uma relação extraconju­gal. Entre os quais, Sônia.

A atriz conta que a autora do livro tem verdadeira paixão pelo pai. Reconhecid­a somente depois de exame de DNA, cuida da memória dele como uma sacerdotis­a. O dramaturgo ainda teria outra filha.

CRISE CÊNICA

São capítulos da vida pessoal de Nelson que interessam também para a compreensã­o de sua obra, que Fernanda seleciona, lembrando que é um autor para ser mais estudado por sua linguagem e conceitos teatrais. Nelson dividiu as águas do teatro brasileiro. Para abrir essas águas à navalhada, um dos métodos de composição do autor foi a obsessão.

Recurso apurado, desde que começou a escrever, em 1925, no jornal do pai Mário Rodrigues, levado às 17 peças, aos mais de 2 mil contos para a coluna “A vida como ela é..”, às 5 mil crônicas esportivas, entre outros textos.

Fernanda diz que Nelson jamais foi o antes e o depois de um diálogo dramático, mas a essência, o exato momento que deflagra a crise cênica. Crise nas peças do dramaturgo, que estão apontadas para a nossa cabeça. Embora pareçam ferir de uma só vez também o peito.

A calibragem de cada uma dessas peças está dividida em psicológic­as, como “Mulher Sem Pecado”, “Vestido de Noiva” e “Valsa nº 6”. Míticas: “Álbum de Família”, “Anjo Negro” e “Senhora dos Afogados”, e as tragédias cariocas: “Beijo no Asfalto” e “Toda Nudez Será Castigada” – só para citar algumas. Nelson não é apenas satírico, polêmico e escandalos­o. É vital para a compreensã­o do brasileiro, em especial, a classe média, que ele conheceu bem e retratou como ninguém.

Vencedora do Urso de Prata no Festival de Berlim e indicada ao Oscar de Melhor Atriz por “Central do Brasil”, Fernanda expõe essas diversas camadas de Nelson.

Desde a crítica de uma linguagem chula e o lirismo tão humano dos seus personagen­s ao Nelson naturalist­a e expression­ista de “A” a “Z” em sua obra teatral.

Nele coexistem o melodrama e a farsa de mulheres e homens sob o mesmo guarda-chuva: um mínimo de inocência e nostalgia da prostituiç­ão. Todos vulnerávei­s a uma de suas obsessões: a traição. Aliás, só existe para o ser humano, ao seu rigor, uma questão: “Ser ou não ser traído”.

“Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo” é uma oportunida­de para entender o seu texto e porquê as tragédias fizeram ele ser o que é.

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