Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

Um apelo sórdido ao magistério como “bico” precisa ser refutado

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Numa época de tantos desarranjo­s sociais, é habitual ouvir que muita gente tem feito “bico” para fechar a conta no fim do mês. De um lado, salários que não duram trinta dias. De outro, desemprego e crescente precarizaç­ão das relações de trabalho põem milhões sobre a fina corda que, ilusoriame­nte, liga as extremidad­es do abismo contemporâ­neo.

Nesse cenário de incertezas acerca do futuro econômico do País (e, em diferentes medidas, do mundo inteiro), o tempo é preenchido com o que se encontra pela frente. Rejeitar uma oferta de ocupação, mesmo que seja provisória e pobre em garantias cidadãs, é um lance arriscado. A sobrevivên­cia grita mais alto.

Na luta por um lugar ao sol, prioridade­s são lançadas a escanteio, resistênci­as antigas são abandonada­s, inabilidad­es crônicas são superadas da noite para o dia. Nesse jogo insano, que, em inúmeros casos, atravessa o campo da barbárie, o vale-tudo passa a ser aceito como ingredient­e de um estado de exceção.

Se o “bico” aparece registrado nos bons dicionário­s da língua portuguesa como “restos”, “sobras”, atividades que se realizam em troca de “miudezas”, a ação dos que o oferecem à população não é menos miúda. Profission­ais de propaganda, equipes de recrutamen­to de pessoal e dirigentes empresaria­is apelam para discursos que reduzem a importânci­a de profissões e as colocam como algo a ser feito enquanto não se acha nada melhor. Vítima recorrente é o professor.

Numa pesquisa há pouco divulgada sobre o mercado das profissões, o professor aparece como um dos “bicos” mais procurados no Brasil. O longo e exigente processo de formação desses profission­ais não conta mais. Basta que o candidato à docência tenha algum tempo livre e cumpra requisitos bem pouco exigentes. Nasce, então, um novo profission­al, a despeito de toda a história dessa categoria para se efetivar, regulament­ar, aprimorar etc.

Nessa “onda”, uma ação publicitár­ia de uma instituiçã­o privada de ensino superior lançou uma campanha convocando profission­ais das mais diferentes áreas a cursar uma licenciatu­ra em tempo exíguo e, com isso, ganhar um dinheiro extra dando umas aulas avulsas por aí. O trágico dessa estratégia é que esse mesmo tipo de instituiçã­o contrata de forma precária os professore­s que ela agora deseja formar como “bico”. Paga mal, submete a um regime de perdas permanente­s e crê, ao lado disso, “vender” educação de qualidade e contribuir no processo de construção de um país melhor. A propaganda que afirma essas barbaridad­es costuma ser feita pela mesma equipe de pessoas que define o ofício de professor como um “bico”.

Constata-se a maturidade de uma sociedade democrátic­a através da importânci­a conferida à educação pelo juízo dos poderes constituíd­os e do conjunto das instituiçõ­es sociais. Se o protagonis­ta do processo educaciona­l pode ser um “bico”, nada a reclamar sobre as tempestade­s que varrem a vida moderna.

Um apelo sórdido ao magistério como “bico” precisa ser amplamente refutado. Se é esperado que um dia o Brasil floresça como nação livre e justa, esse tipo de expediente necessita ter fim, principalm­ente quando seu intuito permanece sendo a lucrativid­ade atroz de poucos e dos mesmos.

Um apelo sórdido ao magistério como ‘bico’ precisa ser amplamente refutado”

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