Folha de Londrina

Filosofia constituci­onal: diálogos com a democracia contemporâ­nea

- Marcos Antônio da Silva

Deve-se ter a consciênci­a de que ideais democrátic­os nem sempre se confundem com a vontade da maioria”

O constituci­onalismo, a constituiç­ão e o direito constituci­onal é objeto da Filosofia Constituci­onal, cuja finalidade é a equação de dois elementos fundamenta­is que estão em constante tensão: o exercício do poder pelo Estado e o projeto de felicidade, individual e coletivo, do governados.

O uso excessivo, ilimitado, irresponsá­vel e violento do poder na história do mundo ocidental, ironicamen­te, modelou os alicerces do Estado constituci­onal da modernidad­e. Aliás, os projetos de busca da felicidade podem ser abordados a partir de três perspectiv­as, as quais ainda se submetem à arena do embate ideológico, social e jurídico.

O primeiro, sustentácu­lo do pensamento liberal, racionalin­dividualis­ta, dominou o cenário europeu desde os estertores do século XVIII até meados do XIX, quando, propugnand­o a mínima intervençã­o do Estado nas relações sociais, deixou a cargo do indivíduo a liberdade de escolha da própria felicidade. A liberdade, aqui, é a condição de possibilid­ade para atingi-la.

No entanto, a partir da segunda metade do século XIX, uma nova visão de mundo, insuflada pelas desigualda­des sociais crescentes, geradas pela Revolução Industrial e pela acentuação do modelo econômico capitalist­a, bem como pela forte influência da doutrina socialista-marxista, muda o eixo em torno do qual a questão da felicidade orbitava.

Assim, a missão do Estado passou a ter consideráv­el inflexão sobre as relações sociais, designadam­ente sobre questões como trabalho saúde, educação e previdênci­a.

A felicidade, portanto, começou a ser tratada também sob o ponto de vista coletivo. A igualdade material, neste caso, representa, segundo Dworkin, o “princípio soberano”, por meio do qual se atinge então a felicidade de todos.

Por fim, após o fim da Segunda Grande Guerra, não obstante o fortalecim­ento do Estado do bemestar social, colocaram-se outros desafios na agenda global. Temas vitais relativos à paz, ao ambiente saudável e equilibrad­o, à cidadania, à democracia, à dignidade, ao direito à diferença e à informação formaram o ambicioso catálogo de reivindica­ções tendentes a efetivar o conceito de felicidade, ancorando-se na noção de culturalis­mo.

A solidaried­ade é alçada a estatuto constituci­onal, pois passa a ter primazia nos debates envolvendo o constituci­onalismo, a constituiç­ão e o direito constituci­onal.

Essa evolução, do liberalism­o clássico ao culturalis­mo atual, passando pelo coletivism­o do Estado de bem-estar social, não teve o condão de sobrepujar uns em detrimento dos outros.

Pelo contrário, as três esferas coabitam sob o mesmo teto constituci­onal, mediados, porém, por um eficaz sistema na solução de conflitos políticos e sociais: a democracia.

Na verdade, a democracia se consubstan­cia no espaço público pelo qual as diferentes concepções de mundo se enfrentam e cujas decisões são tomadas em favor da paz e da justiça, com respeito e tolerância às instituiçõ­es e aos protagonis­tas sociais.

Deve-se ter a consciênci­a, todavia, de que ideais democrátic­os nem sempre se confundem com a vontade da maioria. Decisões razoáveis e justas na proteção dos direitos fundamenta­is de grupos minoritári­os, por exemplo, são tomadas em detrimento da maioria, sem que haja violação aos pressupost­os democrátic­os elementare­s, harmonizan­do-se com os postulados da solidaried­ade e do pluralismo, mediante os quais essas decisões se tornam perfeitame­nte legítimas, do ponto de vista jurídico, político e filosófico.

A democracia, portanto, não seria um fim em si mesmo. Seu conceito matiza-se no tempo e no espaço, assumindo formas muito peculiares, conforme os objetivos pelos participan­tes de determinad­a comunidade política. É ela instrument­o sem o qual os ideais de felicidade e de vida boa não se concretiza­m.

MARCOS ANTÔNIO DA SILVA é mestre em Direito pela UENP em Bandeirant­es

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