Filosofia constitucional: diálogos com a democracia contemporânea
Deve-se ter a consciência de que ideais democráticos nem sempre se confundem com a vontade da maioria”
O constitucionalismo, a constituição e o direito constitucional é objeto da Filosofia Constitucional, cuja finalidade é a equação de dois elementos fundamentais que estão em constante tensão: o exercício do poder pelo Estado e o projeto de felicidade, individual e coletivo, do governados.
O uso excessivo, ilimitado, irresponsável e violento do poder na história do mundo ocidental, ironicamente, modelou os alicerces do Estado constitucional da modernidade. Aliás, os projetos de busca da felicidade podem ser abordados a partir de três perspectivas, as quais ainda se submetem à arena do embate ideológico, social e jurídico.
O primeiro, sustentáculo do pensamento liberal, racionalindividualista, dominou o cenário europeu desde os estertores do século XVIII até meados do XIX, quando, propugnando a mínima intervenção do Estado nas relações sociais, deixou a cargo do indivíduo a liberdade de escolha da própria felicidade. A liberdade, aqui, é a condição de possibilidade para atingi-la.
No entanto, a partir da segunda metade do século XIX, uma nova visão de mundo, insuflada pelas desigualdades sociais crescentes, geradas pela Revolução Industrial e pela acentuação do modelo econômico capitalista, bem como pela forte influência da doutrina socialista-marxista, muda o eixo em torno do qual a questão da felicidade orbitava.
Assim, a missão do Estado passou a ter considerável inflexão sobre as relações sociais, designadamente sobre questões como trabalho saúde, educação e previdência.
A felicidade, portanto, começou a ser tratada também sob o ponto de vista coletivo. A igualdade material, neste caso, representa, segundo Dworkin, o “princípio soberano”, por meio do qual se atinge então a felicidade de todos.
Por fim, após o fim da Segunda Grande Guerra, não obstante o fortalecimento do Estado do bemestar social, colocaram-se outros desafios na agenda global. Temas vitais relativos à paz, ao ambiente saudável e equilibrado, à cidadania, à democracia, à dignidade, ao direito à diferença e à informação formaram o ambicioso catálogo de reivindicações tendentes a efetivar o conceito de felicidade, ancorando-se na noção de culturalismo.
A solidariedade é alçada a estatuto constitucional, pois passa a ter primazia nos debates envolvendo o constitucionalismo, a constituição e o direito constitucional.
Essa evolução, do liberalismo clássico ao culturalismo atual, passando pelo coletivismo do Estado de bem-estar social, não teve o condão de sobrepujar uns em detrimento dos outros.
Pelo contrário, as três esferas coabitam sob o mesmo teto constitucional, mediados, porém, por um eficaz sistema na solução de conflitos políticos e sociais: a democracia.
Na verdade, a democracia se consubstancia no espaço público pelo qual as diferentes concepções de mundo se enfrentam e cujas decisões são tomadas em favor da paz e da justiça, com respeito e tolerância às instituições e aos protagonistas sociais.
Deve-se ter a consciência, todavia, de que ideais democráticos nem sempre se confundem com a vontade da maioria. Decisões razoáveis e justas na proteção dos direitos fundamentais de grupos minoritários, por exemplo, são tomadas em detrimento da maioria, sem que haja violação aos pressupostos democráticos elementares, harmonizando-se com os postulados da solidariedade e do pluralismo, mediante os quais essas decisões se tornam perfeitamente legítimas, do ponto de vista jurídico, político e filosófico.
A democracia, portanto, não seria um fim em si mesmo. Seu conceito matiza-se no tempo e no espaço, assumindo formas muito peculiares, conforme os objetivos pelos participantes de determinada comunidade política. É ela instrumento sem o qual os ideais de felicidade e de vida boa não se concretizam.
MARCOS ANTÔNIO DA SILVA é mestre em Direito pela UENP em Bandeirantes