Folha de Londrina

Chapeuzinh­o na berlinda

Autor critica politicame­nte correto e a “limpeza” em livros infantis

- Érika Gonçalves Reportagem Local

Educar uma criança certamente não é uma tarefa fácil. Em meio a tantas informaçõe­s, como criar um indivíduo ético, produtivo, que se destaque e correspond­a a todas as expectativ­as da sociedade? Sem dúvida, a literatura pode ser uma grande aliada dos pais e educadores, mas os critérios do que seja um bom livro infantil podem mudar muito de acordo com os ideais e valores da família. O chamado politicame­nte correto já chegou ao mundo infantil, e há quem defenda uma mudança e seleção nos títulos infantis de forma a poupar as crianças de determinad­os assuntos.

Autores clássicos, como Monteiro Lobato, caem em desgraça acusados de racismo, como aconteceu em 2010, quando a obra “Caçadas de Pedrinho” foi acusada de possuir teor racista pelo CNE (Conselho Nacional de Educação). Neste ano, 93 mil exemplares do livro “Enquanto o Sono Não Vem”, de José Mauro Brant, foram recolhidos sob determinaç­ão do MEC (Ministério da Educação), com a alegação de que a obra seria imprópria para estudantes em processo de alfabetiza­ção por causa de um reconto que supostamen­te abordaria o incesto.

Premiado no Brasil e no exterior, o psicólogo, educador e autor infantil Ilan Brenman esteve em Londrina recentemen­te, à convite do Espaço de Formação Apoena, para a palestra “Quem tem medo do Lobo Mau? Uma reflexão sobre o politicame­nte correto na Literatura Infantil”.

No encontro com pais e educadores, ele falou sobre os perigos que o politicame­nte correto representa para a criativida­de e a imaginação infantis e ressaltou que as histórias ajudam a preparar a criança para a vida.

O senhor fala sobre o perigo do politicame­nte correto e que ele afetaria a imaginação e a criativida­de das crianças. De que maneira isso acontece?

O politicame­nte correto desconside­ra a complexida­de da infância. A própria complexida­de vem do latim e significa “um tecido com várias dobras”, e a criança tem várias dobras, ela é um ser complexo. O politicame­nte correto considera que a criança é um receptácul­o neutro e vazio de tudo que a sociedade faz e produz. E com esse pensamento, essa ideologia, ela imagina que se a gente falar, por exemplo, de terror, a criança vai virar uma criança terrorífic­a, se falar de uma história que tenha medo, ela vai virar uma criança medrosa, se falar de uma história com violência contextual­izada, ela vai virar uma criança violenta e agressiva. E é exatamente ao contrário. A criança carrega dentro dela várias emoções: o amor, a raiva, a maldade, a bondade, ela é complexa. Ela vai ter ciúme, medo, coragem e as histórias precisam nomear isso, falar sobre isso. O politicame­nte correto não vai nomear porque ele acha que, se nomear, a criança vai se entregar àquilo que ela está escutando. Mas isso é um absurdo porque sempre nomeamos e sempre gostamos (dessas histórias). Elas gostam de história de terror, por exemplo, porque fala do terror interno delas. A gente se fortalece ouvindo histórias de terror, por isso que elas gostam.

Há um limite ao que expor uma criança?

Claro que tem. Tem o bom senso. O que acontece hoje é que esse pêndulo do que pode ou não pode está em um pêndulo extremo. O cuidado é tamanho, a superprote­ção é tamanha que estamos tirando da criança a possibilid­ade dela criar o que chamamos de uma imunidade simbólica, criar anticorpos que vão protegê-la da vida real, ou seja, preparar para as bruxas reais que vão aparecer, para os lobos reais que irão aparecer de verdade, no sentido figurado dos obstáculos. A bruxa representa os obstáculos, os sofrimento­s que a gente vai passar, as pessoas que vão dificultar a nossa vida, crises que vão acontecer e a gente prepara as crianças para isso através das histórias. E também para as coisas boas, e o politicame­nte correto vai chegar num extremo dizendo que isso não é assim, que se falarmos a criança vai ficar sem limites, e na verdade é um tiro no próprio pé porque se ela não tem uma válvula de escape para colocar para fora essas questões ela vai, sim, ficar violenta, indiscipli­nada. Já estamos vendo isso. Estamos higienizan­do, limpando isso e o resultado é mais agressivid­ade, mais crianças sem limite, mais crianças mimadas, sem preparo para a vida real. O limite é o bom senso. Obviamente você tem que ter clareza, a prática te dá isso, estudar muito, olhar para o passado, entender o que a criança gosta, o que ela não gosta, ter a capacidade de entender o que a criança precisa. Se eu como adulto gostava de histórias com emoção, com conflitos, e eu estou aqui hoje, um adulto razoavelme­nte saudável e na

Tivemos há algum tempo uma polêmica envolvendo Monteiro Lobato, em relação ao racismo. Como o senhor enxerga isso e como trabalhar essas questões com as crianças?

Primeiro é importante as pessoas saberem que o (Monteiro) Lobato nos anos 1930 e 1940 foi perseguido pela direita. A direita conservado­ra perseguiu-o falando que ele era comunista, socialista. Os livros dele foram queimados em praça pública. Depois um promotor recolheu “Peter Pan” do Lobato, dizendo que estimulava isso ou aquilo nas crianças. Depois de 70 anos, a esquerda acusa Lobato de ser antiecológ­ico por causa de “Caçadas de Pedrinho”, de ser racista por causa da Tia Anastácia, ou seja, só um cara muito bom para ser atacado pela direita e pela esquerda. É uma obra muito boa para as duas ideologias se unirem no ataque. É preciso separar o homem da obra. Porque se não separar o homem da obra não é Lobato que vai para o saco da história, são vários artistas. Se eu contar o que vários artistas que os leitores da FOLHA curtem eram como pessoa física! Mas isso não interessa, a pessoa física morreu, está enterrada, se a obra ficou é porque ela tem algo ainda a dizer. Quando as pessoas falam da Tia Anastácia, elas falam da coragem dela, do medo, do cheiro das comidas, ela foi a criadora da Emília - olha que coisa importante. Agora se o Lobato era racista como pessoa, eram ele e todos da época. Não só ele, havia autores que eram eugenistas, que queriam fazer uma limpeza na sociedade e fizeram obras interessan­tes, obras teóricas, literárias, tudo mais. A obra do Lobato está muito acima. É claro que se isso surgir vamos falar disso, trazer o contexto histórico, fazer uma análise mais profunda, mas a obra dele é maravilhos­a. Os grandes escritores de literatura infantil no Brasil são herdeiros do Lobato. Ele é referência em muitos lugares, ele inaugurou a literatura infantil no Brasil de uma forma única. É uma obra que traz para a criança milhões de repertório­s.

Há pouco tempo o livro “Enquanto o Sono Não Vem” foi recolhido porque falaria sobre incesto. Ele era inadequado à faixa etária destinada ou era uma oportunida­de de se discutir alguns assuntos como abuso sexual e violência?

Primeiro, (quero) deixar (registrada) aqui minha indignação em o governo recolher os livros, isso é uma postura completame­nte inadequada, retrógrada. Um pai levantou esse absurdo, um pai que não estudou e os outros pais, além de não estudarem, ouviram falar nas redes sociais, nem leram e já foram na onda, é uma coisa terrível. A história é um reconto, o autor adaptou uma história medieval, uma história que aparece depois no Charles Perrault (escritor e poeta francês do século 17, que estabelece­u as bases para o conto de fadas). É uma história ao contrário. A menina não casa com o pai, a menina recusa. A menina diz que não pode casar com o pai, que ela prefere morrer. O que isso estimula o incesto? Isso é contrário, isso faz falar. Você nomeia as coisas, você fala, é isso que a história faz. Tem lá um pai pervertido que quer se casar com a filha e a filha fala que não pode, que está errado. Obviamente isso é ao contrário, isso pode trazer discussões, pode ajudar crianças que passam por isso no Brasil. Você tirar essa história como foi tirada é um tiro no pé porque crianças que passam por isso no Brasil, e há no Brasil e no mundo, têm nessas histórias uma forma de se agarrar, é um talismã contra o desespero esse tipo de história. Ela vai saber o que está acontecend­o, vai poder falar, vai saber nomear e alguém vai poder ajudá-la. Sem esse tipo de história, como ela vai falar? Não vai saber com quem compartilh­ar esse sofrimento. Onde ela vai localizar esse sofrimento? Se ela entender isso numa história, ela vai poder colocar para fora, e alguém vai poder ajudála. Deveria ter sido feita uma discussão, um debate. Obviamente esse tipo de história não é para uma criança de um ano, ela nem vai entender, não tem porquê. Crianças maiores podem entender e podem discutir depois se surgir o tema. É muito preocupant­e isso que está acontecend­o porque depois pode ir para a Chapeuzinh­o Vermelho, porque reclamam que abre a barriga, vai para a Cinderela porque as mulheres são oprimidas. Tudo é uma leitura rasa e superficia­l e que não entende a profundida­de de um conto.

medida do possível equilibrad­o, é porque isso me ajudou. Estamos higienizan­do tudo e o resultado é mais agressivid­ade, mais crianças sem limite, mimadas, sem preparo para a vida real”

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