Folha de Londrina

A poeta entre os mistérios

Elizabeth Bishop era uma poeta total, nela tudo pulsava como literatura

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Sempre repito um poema de Elizabeth Bishop, a mais completa tradução das perdas que conheço: “A arte de perder não é nenhum mistério/ Depois perca mais rápido, com mais critério:/ Lugares, nomes, a escala subsequent­e/ Da viagem não feita./ Nada disso é sério.”

Bishop foi uma poeta norte-americana que viveu muito tempo no Brasil e teve um romance que deu o que falar com a arquiteta Lota de Macedo Soares, um dos maiores nomes do urbanismo brasileiro, uma das responsáve­is, entre outras coisas, pela construção do Aterro do Flamengo, no Rio. Na biografia de Lota soma-se a amizade com o governador Carlos Lacerda e o apoio ao regime militar, mas nada disso tira o brilho do seu talento, era uma arquiteta autodidata,nunca fez curso universitá­rio, mas sua obra fala por ela.

O relacionam­ento de Lota e Bishop durou de 1951 a 1965. Após o rompimento, houve tentativas de reconcilia­ção e desencontr­os, mas depois da morte de Lota, Bishop passou a viver numa casa em Ouro Preto. Essa fase de sua vida foi resgatada este ano, numa edição do Suplemento Literário de MG, pelo artista plástico José Alberto Nemer que foi amigo e conviveu com a poeta.

Surpreende a descrição que ele faz da mulher de 57 anos que parecia ter muito mais idade, da sua solidão imersa em poesia e álcool, dos dias de depressão após a morte da companheir­a de tantos anos quando se trancava durante vários dias no quarto.

Mas surpreende mais ainda, pela beleza, a descrição de como Bishop era uma poeta total, intercalan­do suas conversas corriqueir­as com frases e observaçõe­s tão bonitas que nela tudo pulsava como literatura, tendo por companhia os gatos Suzuki e Tobias.

Em fases críticas de alcoolismo e depressão ela se internava numa clínica em Belo Horizonte, depois voltava aos poucos à vida normal “pedia sorvete, aquarela, papel e livros de bolso”, segundo o seu amigo íntimo. Uma descrição de Bishop sobre um simples lampião caseiro de lata mostra a inspiração dela ao relatar “que alguém quis ressuscita­r a luz da lâmpada.” Com a sensibilid­ade à flor da pele, ela ainda falava de suas mágoas, da existência marcada por muitos sofrimento­s, mas tinha olhos para as coisas boas da vida e, segundo Nemer, soube tirar do Brasil sua poética.

Quando Bishop morreu quase ninguém escreveu sobre ela por aqui, com exceção de Carlos Drummond de Andrade, no Jornal do Brasil, que a considerav­a “a melhor autora de um dos mais tocantes poemas sobre a vida nos morros cariocas.” Trata-se do poema “A Balada de Micuçu, o Ladrão da Babilônia”.

Amiga de autores importante­s como Aldous Huxley, a quem acompanhou numa viagem ao Xingu, Bishop ganhou o prêmio Pulitzer, foi reconhecid­a em vida, mas gostava mesmo das situações banais e do anonimato.

Nemer conviveu com ela durante onze anos, até se separarem nos anos 1970, quando ela foi para Boston e ele para Paris. A coisa mais impression­ante sobre esta amizade ocorreu em 1979, quando o artista plástico voltou ao Brasil e numa das primeiras noites depois de sua chegada sonhou com Elizabeth Bishop que lhe surgia numa imagem estática, em movimento no sonho apareciam apenas os gatos Suzuki e Tobias. No dia seguinte, ele soube da morte da amiga pela televisão. Para mim, este desfecho não deixa de ser outro poema, forma de expressão que sempre nos põe entre o delírio e o mistério.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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