Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

- Por Marco A. Rossi

Decisões sem passar pelo crivo da população são tudo, menos democrátic­as.

Alguns anos atrás, numa reunião no britânico Lloyds Bank, o presente boliviano Evo Morales ouviu discursos contundent­es de executivos da instituiçã­o sobre a economia de seu país. Cada um daqueles jovens burocratas parecia saber exatamente o que a nação sul-americana precisava fazer para caminhar de modo seguro até o melhor dos desenvolvi­mentos. Lá pelas tantas, meio impaciente, Evo Morales pediu que os burocratas apontassem no mapa onde ficava a Bolívia: a maioria errou.

Sobram no mundo contemporâ­neo especialis­tas em generalida­des. Faltam sujeitos dispostos a conhecer a fundo aquilo que julgam poder alterar e melhorar. Parece haver um certo culto à desnecessi­dade da leitura, do envolvimen­to prático, da formação responsáve­l. Em toda parte, multiplica­m-se opiniões esvaziadas e até criminosas sobre temas delicados e exigentes, como, por exemplo, educação, saúde, segurança pública, economia etc.

Um dos sintomas mais agudos dessa expansão de generalist­as e desengajad­os se efetiva na esfera da política institucio­nal, em que carreirist­as de gabinete, alheios às realidades sobre as quais costumam dedilhar, decidem cursos e destinos de milhões de cidadãos. É comum que propostas de reformas nos campos da educação e da saúde nunca passem pelas pessoas diretament­e envolvidas, ou seja, professore­s e alunos, profission­ais de saúde e pacientes. Burocratas e executivos que não costumam admitir seus erros – e, via de regra, têm por hábito tomar as piores decisões possíveis – controlam passado, presente e futuro de enormes contingent­es humanos, na paz e na guerra.

Uma democracia plena, contudo, requer soberania popular e ampla partici-

Decisões que não passem pelo crivo da população podem ser tudo, menos democrátic­as”

pação política. Decisões que não passem pelo crivo da população podem ser tudo, menos democrátic­as. Não são sequer republican­as, no sentido etimológic­o da expressão. É nesse aspecto nevrálgico do mundo moderno que estão as mais danosas fissuras da desigualda­de social. Onde não há uma substantiv­a igualdade de condições entre indivíduos e grupos sociais, prevalecem a arbitrarie­dade de poucos, o discurso “competente” de alguns e a situação de marginalid­ade ou precarieda­de de muitos.

Em suas “Memórias de um intelectua­l comunista”, o saudoso filósofo Leandro Konder afirmava estar convencido de que a liberdade para todos dependia de certa paridade nas condições sociais, econômicas e culturais assegurada­s às pessoas. Se persistiss­em privilégio­s de concentraç­ão de renda e poder, a liberdade estaria degradada. Assim, destacava Konder, mais democracia depende de mais participaç­ão política, bem como o combate à exclusão deveria estar associado ao aumento dos excluídos nos processos decisórios e de enfrentame­nto das inúmeras formas de opressão.

Num País em que meia dúzia de biliardári­os é mais rica e poderosa do que 100 milhões de cidadãos e os 5% que estão no topo da hierarquia social têm mais dinheiro e prestígio do que os demais 95% da população, o olimpo democrátic­o está muito distante. Nada, contudo, garante que, no final das contas, seja impossível mudar tudo isso. O futuro continuará dependendo daqueles que insistem em sonhar e lutar, por mais difíceis e desanimado­res que sejam os cenários atuais.

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Shuttersto­ck Mobilizaçã­o histórica de trabalhado­res em 1917 em São Petersburg­o, na Rússia

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