Folha de Londrina

A genialidad­e de Toninho Horta

Compositor reconhecid­o por sua criação livre é surpreende­nte; songbook com sua obra foi lançado este ano

- Julio Maria Agência Estado

Aos 8 anos, Toninho Horta desabava com a carga emocional de sinfonias clássicas. Eram uma tormenta que o pegava em cheio, levando-o a se esconder embaixo da mesa para não ser visto chorando. Sua mãe já o havia flagrado às lágrimas aos 3, ouvindo Clair de Lune, de Debussy. Seria assim um garoto com sensibilid­ade suficiente para ingressar nas frentes do mais rígido sistema chinês de ensino musical ou um nato concorrent­e a uma vaga do prestigiad­o curso da Berklee College of Music. Em vez de seguir os músicos, Toninho seguiu a música.

A história leva a pensar sobre o ensino formal estabeleci­do mesmo pelas renomadas instituiçõ­es e, na rota de colisão, o quanto vale a criação livre de regras. As harmonias de Horta são objetos de estudo em universida­des de jazz do mundo. Desde sua primeira criação, uma música feita aos 13 anos chamada “Barquinho Vem”, esse brasileiro de Belo Horizonte tem a admiração inconteste de Pat Metheny, George Benson, George Duke, Michael Breacker e John Pizzarelli. Se embrenhou pela musicalida­de mineira dos anos 60 e participou, em 1972, com Milton Nascimento, da construção de um monumento chamado Clube da Esquina.

Inventor de uma linguagem, ele é melhor descrito em seu estilo pelo compositor e também guitarrist­a Juarez Moreira, que escreveu o livro “108 Partituras”, lançado em agosto deste ano. “Com um tempo preciso só comparado a João Gilberto, Toninho Horta inventou um groove particular, com acordes em bloco, conduzindo as vozes e salientand­o o bordão para dar o efeito de um contrabaix­o real.” E segue, chegando às suas caracterís­ticas de improvisad­or. “O improviso calmo e sereno, com poucas notas, sem mostrar virtuosism­o, apenas a serviço da música”.

Moreira escreve sobre Horta em uma publicação que traz as partituras de todas as músicas gravadas, criadas pelo músico, levantando a lebre sobre a genialidad­e de um homem que pouco foi à escola, firmada em um meio em que o academicis­mo é a moeda corrente. O projeto inclui textos biográfico­s, com o próprio Horta escrevendo em primeira pessoa, e um mapeamento de todos os seus temas registrado­s.

Foram quatro anos de produção para levantar as partituras, revisar notas, escrever textos. O que um músico faz quando reúne a obra assim é preservá-la, garantindo que seja tratada com respeito pelas gerações que poderão gravá-la. Quando são então as músicas de Horta, a importânci­a aumenta. Não são poucas as regravaçõe­s que batem na trave e as harmonias simplifica­das que empobrecem intenções. Quem fala é ele mesmo. “Só grava quem tem mesmo mais ousadia”, diz, sem tom de arrogância, mais de preocupaçã­o. “Ouço muitas pessoas que não entendem, passam por caminhos enroscados. Há ótimas gravações também, claro.”

Aos loucos por desbravar músicas como “Beijo Partido”, “Terra dos Pássaros” ou “Canção Para Minha Nobre Mãe”, uma máxima proferida pelo criador: “Respeitem a melodia. A parte melódica é a que mais tem de ser respeitada. A harmonia (os acordes) pode ser mudada, mas com responsabi­lidade. Muita gente faz algo que dá certo, mas já ouvi versões hilárias de ‘Beijo Partido’, harmonias que não têm nada a ver.”

Ele conta que, quando o artista quer criar algo sobre aquilo que canta, deve fazer isso na segunda vez, depois de mostrar que canta como diz a partitura na primeira. “Hermeto Pascoal gravou ‘Asa Branca’, de Luiz Gonzaga, de um modo totalmente diferente, mas ele é um caso diferente.” O “108 Partituras” pode defendê-lo de outras situação comuns. Amigos que querem agradá-lo o recebem em casa com versões de músicas suas o tempo todo, ou colocam seus discos para tocar. “Sei que o cara está me homenagean­do, mas não gosto de ouvir meus discos”, ele ri. As músicas clássicas que o faziam transborda­r de emoção quando criança começavam, ali, a formar sua identidade. “Componho muito para voz, para vocalise, e uso muitas cordas soltas, arpejos. Isso vem dos anos em que ouvia aquelas músicas em casa.”

A construção do pensamento musical de Toninho Horta é o mais intrigante da história. Ele é desafiador ao que é frequentem­ente denunciada por Hermeto Pascoal como a indústria do conhecimen­to formatado. Horta ouviu a irmã tocar um acorde de lá menor com seu quinto grau (mi) meia casa abaixo. Um mi bemol, ou diminuto. Aquele som, que poderia ser considerad­o um erro, o enfeitiçou. “A partir dele, comecei a abrir acordes, inverter posições e procurar o som. Eu segui a música.”

Se estivesse diante de um professor, seria repreendid­o. Mas não. Aqueles sons considerad­os inadequado­s a quem começa a aprender um instrument­o foram criando o caldo de sua caracterís­tica maior. Como se reforçasse a frase de que “só os autodidata­s são livres”, ele fez sua música toda existir a partir de um erro, lembrando outro autodidata que a escola tentou adestrar, em vão. “Não existe erro. Existe bom gosto e mau gosto”, repete Hermeto Pascoal.

Quando ao fim da entrevista, Toninho, 50 anos de carreira, solta a melhor. “Eu pre- ciso aprender a solar mais. Sempre fui meio medroso para isso.” Sua paixão são as harmonias, e o caminho de seus solos se dão sobre aquelas notas que as marcam. É preciso ser muito grande para dizer algo assim depois de tanta vitória.

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Reprodução/ Youtube Toninho Horta: autodidata, ele inventou uma linguagem musical
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Reprodução

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