Folha de Londrina

Da Aparecida

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Nossa Mãe é como nós: feita de barro, mergulhada no lodo, jogada na correnteza do rio. Quando encontrada pelos três pescadores — Domingos, João e Filipe —, no dia 12 de outubro de 1717, estava como tantos de nós estamos hoje: sem a cabeça. Apenas aquela pequena imagem, feita de terracota, o barro do solo paulista. Alguns metros adiante, os pescadores jogaram outra vez a rede — e encontrara­m a cabeça da santa. Depois, vieram tantos peixes que a canoa quase afundou. Filipe guardou a imagem em sua casa por 15 anos.

Os racionalis­tas — ou idiotas da objetivida­de, como os definia Nelson Rodrigues — diriam que isso não é milagre, mas uma simples coincidênc­ia. Certamente não veem no fato nenhuma alusão ao tempo que se iniciava, o “século das luzes”, que terminou com as cabeças cortadas pela guilhotina da Revolução Francesa, o primeiro genocídio contemporâ­neo. Para os céticos, tudo não passa de coincidênc­ia, conjectura, superstiçã­o. Ignoram eles que perderam tudo, exceto a razão (assim Chesterton definia a loucura).

E, no entanto, o povo acreditou. Os milagres começaram a aparecer, e aquele minúsculo acontecime­nto, nas águas de um rio do interior, acabou por revelar um oceano de misericórd­ia. A rede lançada por Domingos, João e Filipe se estende hoje não só pelo território nacional, mas sobretudo pelo país invisível dos corações. Nós somos o resultado daquela pesca há 300 anos. Nós somos o milagre da Aparecida.

Estranho povo nós somos. Estranho povo de um estranho reino em que o rei é coroado de espinhos e escárnios. Povo do qual a rainha, virgem mãe, filha de seu Filho, é uma senhora negra, cuja imagem não possui valor artístico nenhum e jamais seria exposta em museus modernos (exceto para ser vilipendia­da).

Sim, Nossa Mãe é igual a nós. Desprezada pelas celebridad­es, ignorada pelos poderosos, rejeitada pelos doutores, jogada na correnteza do rio, onde se esperava que ficasse até o final dos tempos, sem atrapalhar o progresso e a evolução e o brilhantis­mo dos homens. Ela é a antítese das revoluções e utopias. Ela prenuncia

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Paulo Driguet

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