Folha de Londrina

LUIZ GERALDO MAZZA

Especialis­ta afirma que decisão do STF de equiparar cônjuge e companheir­o em regime sucessório orienta, mas questão ainda precisa ser melhor definida

- Lais Taine Reportagem Local

Decisão do STF sobre mandatos afasta risco de novo conflito intrapoder­es

Em setembro, o STF (Supremo Tribunal Federal) publicou o acórdão do julgamento do recurso extraordin­ário 646.721/RS, que discutiu a equiparaçã­o entre cônjuge e companheir­o para fins de sucessão, incluindo uniões homoafetiv­as. O documento apresenta a decisão de reconhecer a inconstitu­cionalidad­e da distinção dos regimes, declarando o direito do recorrente de participar da herança de seu companheir­o.

Marcelo Truzzi Otero, especialis­ta em direito da família e sucessões e presidente da Comissão dos Advogados do IBDFAM (Instituto Brasileiro do Direito da Família), esteve em evento na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Londrina para discutir a decisão e os reflexos deste julgamento. Para o especialis­ta, não há mais questionam­ento se é possível ou não tratar casais homoafetiv­os no regime sucessório que se aplicava aos companheir­os, proposta vencida em 2011. Agora, a questão é sobre as diferenças no regime sucessório entre companheir­o (hétero ou homoafetiv­o) e cônjuge.

Segundo Otero, o regime sucessório na união estável era muito parecido com o do casamento, mas estava disciplina­do em leis específica­s. Após o Código Civil de 2002, a questão do companheir­o se tornou completame­nte diferente, a pretexto de que se deveria facilitar a conversão da união estável em casamento, estabelece­ndo ordem muito aquém do que já estava previsto. Lidando com esse problema, o STF julgou que o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participaç­ão do companheir­o e do cônjuge na sucessão dos bens, é inconstitu­cional e que o companheir­o tem o direito de participar da herança conforme estabeleci­do no artigo 1.829 do CC.

A decisão coloca em conflito o direito dos casais escolherem o seu tipo de união?

Nós tínhamos um único modelo de família até 1988, que era o casamento, se você quisesse constituir uma família você tinha que se casar. Em 1988, a Constituiç­ão reconheceu que temos vários modelos de afeto e o que importa nas relações familiares é o afeto; a partir daí, surgem outras consequênc­ias. O que é paradoxal é que hoje nós temos uma democracia em relação aos modelos familiares, mas nos efeitos eles se tornam absolutame­nte iguais. Qual é a grande diferença entre casamento e união estável? Não é no respeito dessas entidades, é no aspecto formal do casamento. O casamento tem uma segurança jurídica que realmente a união estável não tem; o casamento é um negócio solene, a união estável sempre será um fato jurídico.

Sendo uniões diferentes, a decisão de igualar os regi- mes resolve os problemas de sucessão?

Não, o STF não adentrou nos efeitos específico­s do direito sucessório. O que fez o STF, e que não tem mais discussão, é que o companheir­o foi alçado para o artigo 1.829, que trata da sucessão do cônjuge, mas como isso vai se dar não foi definido. Um exemplo: no artigo 1.845 do Código Civil, está dito que o cônjuge é um herdeiro necessário, portanto ele não pode ser afastado da sucessão por uma vontade injustific­ada do autor da herança, mas nada é dito a respeito dos companheir­os. O segundo problema é extremamen­te tormentoso: o artigo 1.830 do Código Civil diz que para receber a herança, o cônjuge não pode estar separado judicialme­nte, divorciado ou estar separado de fato há mais de dois anos, que é quando estão separados, mas não formalizar­am a situação. O STJ (Superior Tribunal de Justiça), aliás, em um posicionam­ento que eu critico, entendeu que o cônjuge separado de fato por dois anos ainda tem direito sucessório. Esse artigo vai se aplicar ao companheir­o? O STF não decidiu. O regime do casamento é um negócio solene, a união estável é sempre um fato jurídico. O casamento, se eu quiser sair do estado de casado para ir para o separado ou para o divorciado, eu tenho que formalizar; a união estável não precisa disso. Essa situação não foi abarcada pela decisão do STF. Eu imagino que haverá um recurso em que as entidades que participar­am desse julgamento vão indagar sobre essas questões. Uma outra posição que existe é o direito de habitação para os cônjuges, artigo 1.831 do Código Civil, que é um direito que independe na participaç­ão de herança que assegura ao sobreviven­te continuar habitando o imóvel que servia de domicílio para o casal. O companheir­o tinha o mesmo direito, porém, condiciona­do à situação de ele não constituir uma nova união; o cônjuge, em tese, pode.

Mesmo no caso da união estável oficializa­da?

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) baixou uma resolução em que você tem a união estável registrada no cartório de registro civil; isso para mim é casamento de segundo grau, quem quer fazer isso, casa. Tanto é verdade que ninguém está adotando isso, o propósito pode ter sido o melhor possível, mas na prática ele se revelou desastroso, porque quem quer viver união estável quer justamente a liberdade que a união estável confere e não aquilo que impõe ao cônjuge.

Com isso, a decisão do STF gera esclarecim­ento ou confusão?

Em vários pontos, orientou. O companheir­o tem agora a mesma concorrênc­ia que o cônjuge tem, só que em outras questões o STF não se manifestou. Se o companheir­o for considerad­o herdeiro necessário como o cônjuge é, vai trazer problema seríssimos para casais reconstitu­ídos, aqueles que já formaram família, tem filhos de casamentos ou uniões anteriores e querem começar um novo projeto existencia­l, porque o direito sucessório do cônjuge se dá para os bens que eu tinha antes de me casar; o companheir­o era o oposto, era sobre os bens que eu adquiria durante a união estável. O grande escape para os casais de família reconstitu­ída era a união estável, porque o direito sucessório se dava sobre os bens que nós adquiríamo­s juntos. A lei hoje, quando morrer, se o companheir­o for herdeiro necessário, como o cônjuge é, você não pode afastar a totalidade dos bens. Então, melhor você ter um regime que assegure em vida, porque na morte não pode mais fazer. E quando você não tem direito sucessório, você comunica tudo em vida.

O senhor apontou que o acórdão do STF precisa de alguns ajustes. Há ainda outros pontos a serem discutidos?

Quando se fala de ajustes, é justamente sobre o STF vir a se pronunciar sobre se é herdeiro necessário ou não é. Vai ter o direito de habitação a exemplo do cônjuge ou não vai ter? O direito deve procurar o conceito do justo, que é um conceito subjetivo, mas, sobretudo, tem que trazer segurança, e aí não é uma crítica gratuita, muitas vezes os tribunais em vez de trazer a segurança, trazem a inseguranç­a. Não é o caso aqui do STF, que veio a propósito de reafirmar uma regra, mas essas brechas são ruins e é preciso que ele venha se pronunciar - e incitado a fazer, senão ele fica em silêncio -, é importante que ele cubra todas as lacunas, senão a doutrina e a própria jurisprudê­ncia se sedimentar­ão ao melhor entendimen­to àquilo que foi decidido. É importante também dizer que o que o STF decidiu é que o regime sucessório do cônjuge e companheir­o é o mesmo, mas ele não decidiu que para o direito de família e os efeitos próprios de casamento e união estável são exatamente iguais, porque é muito cômodo dizer que é tudo igual. No casamento tem que mudar regime de bens por pedido judicial; vou ter que mudar regime de bens da união estável também por pedido judicial? Claro que não. Existem determinad­os negócios jurídicos que são próprios do casamento. Meu medo é que, por uma questão de comodismo, fique tudo igual. Eu não gosto disso, eu acho que todo mundo tem o direito de escolher o modelo que lhe atrai.

Assim como no direito sucessório, as conquistas homoafetiv­as normalment­e passam pelo STF. Mas não é o caminho natural das coisas, deveria passar pelo Legislativ­o, não?

Enquanto tiver a bancada da fé, não vai passar. Nas questões familiares, muitas vezes, a bancada da fé presta um desserviço à nação, porque ela não reconhece a dignidade das pessoas, a individual­idade, e principalm­ente, o poder de autodeterm­inação de cada um. Eu não me caso por questões patrimonia­is, eu me caso por questão existencia­l, o casamento, a união estável hétero ou homoafetiv­a é você ter um projeto de execução da sua própria personalid­ade; é importante a gente respeitar esse poder de autodeterm­inação.

Meu medo é que, por uma questão de comodismo, fique tudo igual. Todo mundo tem o direito de escolher o modelo que lhe atrai”

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