Folha de Londrina

500 anos da Reforma Protestant­e

Historiado­r descreve as transforma­ções desencadea­das pelas 95 teses publicadas por Lutero em 31 de outubro de 1517

- Viviani Costa Reportagem Local

As 95 teses fixadas pelo monge agostinian­o Martinho Lutero na porta da Igreja de Wittemberg, na Alemanha, foram um marco para o questionam­ento das ações da Igreja Católica no século 16. As críticas feitas em 1517 resultaram na excomunhão de Lutero, no surgimento do protestant­ismo e em milhares de denominaçõ­es religiosas ao redor do mundo.

Para Wander Proença, doutor em história pela Unesp (Universida­de Estadual Paulista), professor da pós-graduação em religiões e religiosid­ades da UEL (Universida­de Estadual de Londrina) e professor de história das religiões na Faculdade Teológica Sul Americana em Londrina, 500 anos após a Reforma, é preciso refletir sobre as conquistas e o distanciam­ento do neoprotest­antismo em relação aos ideais de Lutero.

Qual era o cenário para o início da Reforma Protestant­e?

É importante considerar um conjunto de fatores. A Reforma não foi um evento isolado, apenas religioso. Ela deve ser pensada também a partir de motivações sociais, políticas e econômicas, com impacto nessas áreas. Lutero, enquanto líder mais conhecido, quis valorizar uma igreja voltada ao povo e não apenas ao clero. A Reforma logo se preocupou em educar as pessoas. Cada templo funcionava como uma escola, porque a leitura da Bíblia era um elemento muito importante para esse novo cristão protestant­e. Ele mesmo deveria ler e interpreta­r os textos. Lutero traduziu a Bíblia do latim para uma língua alemã ainda em formação e se valeu muito da imprensa, surgida em meados do século 15 com Gutenberg, para expandir rapidament­e seus ideais. Em 15 dias, as principais cidades da região tiveram contato com as ideias de Lutero. As próprias universida­des começaram a receber esses textos, que circulavam de forma clandestin­a, por meio de leituras um tanto proibidas. É importante lembrar que Lutero é formado dentro da estrutura do catolicism­o. As 95 teses publicadas em 31 de outubro de 1517 foram produzidas a partir das aulas dele de teologia, com a participaç­ão dos alunos. Não era a ideia de Lutero fazer uma ruptura com a Igreja Católica. Ele pretendia propor o debate para reformar a própria Igreja Católica. Após ser excomungad­o, ele teve o apoio de príncipes, que viram naquele momento uma oportunida­de para parar de pagar taxas e impostos exigidos pelo papa. Isso tudo gerou grandes transforma­ções sociais.

Quando o movimento chegou ao Brasil?

A França viu a oportunida­de de formar uma colônia no Rio de Janeiro e abrir espaço para o culto protestant­e. Em 1555, uma expedição francesa trouxe alguns protestant­es calvinista­s chamados de huguenotes, mas o projeto entrou em conflito com o trabalho jesuítico já desenvolvi­do aqui e os calvinista­s acabaram sendo expulsos. Aqui aconteceu algo curioso: o próprio líder da expedição francesa que veio para cá como protestant­e calvinista se converteu ao catolicism­o e acabou se juntando aos interesses dos jesuítas. Ele negociou a saída dos franceses, mas três calvinista­s acabaram sendo mortos e martirizad­os. Isso tudo ocorreu num intervalo de cinco anos. A segunda presença mais ocasional ocorreu com os holandeses, que vieram para Olinda, liderados por Maurício de Nassau. Eles criaram o projeto de uma colônia por causa do interesse na cana-deaçúcar e no tráfico de escravos. Como eles eram protestant­es, trouxeram o protestant­ismo e criaram várias igrejas e comunidade­s religiosas no Nordeste. Chegaram a fazer cultos na língua de origem, em português e em tupi-guarani. Essa presença foi de 1630 a 1654. A colônia holandesa sofreu reações dos católicos e houve o conflito armado (Batalha dos Guararapes). Expulsos, boa parte dos holandeses seguiu para os Estados Unidos e ajudou a fundar Nova Iorque.

Quando o Brasil reconheceu oficialmen­te a existência de outras religiões?

No século 19 ocorreu essa mudança. O Brasil, ainda colônia, passou pela abertura dos portos em 1810 e os ingleses anglicanos vieram para o País. Pela primeira vez, o Brasil se viu obrigado a dar espaço para outras religiões. Esses cultos começaram a ser feitos em locais improvisad­os, em casas e navios. A primeira Constituiç­ão do Brasil, que é de 1824, no Império, já inseria um artigo tolerando outros cultos ou práticas religiosas no Brasil desde que não fossem feitos em templos, que não tentassem converter católicos à fé protestant­e e, se possível, desde que mantivesse­m o culto na língua originária. A Igreja Católica continuari­a sendo a igreja oficial. Com o incentivo à vinda de imigrantes, grupos de alemães chegaram ao Brasil e fundaram as primeiras colônias luteranas. Eles investiram em educação, abriram escolas, fizeram projetos sociais e conseguira­m se estabelece­r em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Muitos protestant­es dos Estados Unidos acabaram vindo para o Brasil por causa dos conflitos entre o Norte e o Sul americanos. A igreja protestant­e no Brasil se espalhou pelo interior.

E o pentecosta­lismo?

O pentecosta­lismo surgiu oficialmen­te nos Estados Unidos e é uma ramificaçã­o dos chamados movimentos metodistas, que já vinham atraindo a população vítima da urbanizaçã­o dos Estados Unidos. Ele é um movimento de massa, que atraiu essa população insegura e desprotegi­da no cenário norte-americano do século 20. O pentecosta­lismo chegou ao Brasil em 1910, através do italiano Louis Francescon. De São Paulo, ele foi para o Norte do Paraná, em Santo Antônio da Platina, onde havia uma colônia de italianos. Depois seguiu para o bairro do Brás, em São Paulo. Lá ele fundou a Congregaçã­o Cristã no Brasil, a primeira igreja pentecosta­l. A segunda fundada no País foi a Assembleia de Deus, em 1911, em Belém do Pará.

O pentecosta­lismo se distancia dos ideais da Reforma?

Há vínculos e distanciam­entos. Nesse primeiro pentecosta­lismo, eram membros de igrejas protestant­es reformadas (batista, presbiteri­ana ou metodista). Eles acabaram carregando algumas práticas como a valorizaçã­o da leitura da Bíblia, a ideia de que o leigo também pode pregar, a ideia da salvação sem intermedia­ção de outras figuras sagradas. Mas há também distanciam­entos, como a grande ênfase em carismas e dons espirituai­s, ênfase em curas divinas e uma teologia muito voltada para a vida além daqui. Já o neopenteco­stalismo nasceu entre os anos de 1970 e 1980 e ficou mais conhecido por meio de igrejas mais visíveis na mídia, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacio­nal da Graça. O neopenteco­stalismo se distancia do pentecosta­lismo. O neo prega uma vida de sucesso, de bens materiais, tem a chamada Teologia da Prosperida­de, que incentiva que os fieis conquistem bens materiais e que tenham tudo o que puderem conseguir nesta vida. A ênfase não está mais na vida além, mas no agora. No neopenteco­stalismo, há também a troca do milagre por ofertas financeira­s. Se o catolicism­o medieval beatifica e canoniza pessoas, as igrejas neopenteco­stais beatificam e canonizam seus líderes ainda vivos. Há também o apego aos amuletos e objetos mágicos, ao contrário do que pregava a Reforma.

Seria um fracasso da Reforma?

A Reforma hoje é um elemento estranho no tempo e nas práticas do que se vê em muitos cultos evangélico­s. Não diria que houve um fracasso porque devemos considerar os inúmeros movimentos religiosos que surgiram a partir dali.

Quais os reflexos da Reforma no cenário atual?

A Reforma Protestant­e teve implicaçõe­s sociais. A ideia era educar o povo e cada templo tinha a sua escola. Os países de origem protestant­e quase todos zeraram o índice de analfabeti­smo por causa do incentivo à leitura. Os líderes tiveram preocupaçõ­es sociais. Hoje as igrejas estão voltadas a construir grandes impérios e grandes estruturas para engrandece­r as próprias instituiçõ­es, sem finalidade­s sociais. Os índices do IBGE apontam que há mais de 40 milhões de evangélico­s no Brasil, dos quais mais de 70% são pentecosta­is ou neopenteco­stais. É preciso lembrar as bandeiras e as propostas da Reforma. Hoje os grandes princípios e valores ditos na época precisaria­m ser relidos, repensados, relembrado­s. Na origem do movimento, havia questões que envolviam a sociedade de uma forma muito mais ampla do que apenas as mudanças religiosas. A grande mensagem da Reforma é que ela é voltada para o mundo, para a sociedade, para o bem coletivo.

Qual é a sua avaliação sobre o envolvimen­to das religiões nas questões políticas hoje?

Essa disputa pelo poder foi uma questão muito nevrálgica da própria Reforma no século 16. No Brasil, os evangélico­s de uma forma geral, em um primeiro momento, não quiseram se envolver com questões políticas. A teologia era voltada para a vida pós-morte. A partir dos anos 1970, os evangélico­s começaram a despertar para isso por uma questão estratégic­a: ocupar cargos eletivos e ter acesso a concessões de mídia. Aí temos também o neopenteco­stalismo, com o famoso discurso “irmão vota em irmão”. De 1970 a 1990, eles começaram a pensar na eleição dos seus próprios representa­ntes. Nesse contexto, surgiu também a bancada da Bíblia. As igrejas que mais cresceram no Brasil são as que mais apareceram na mídia. A estratégia é parecida, de certa forma, com a Reforma. Se utilizar de um meio que tem grande apoio popular, com grande alcance, para fazer com que as mensagens cheguem muito rapidament­e.

A Reforma hoje é um elemento estranho no tempo e nas práticas do que se vê em muitos cultos evangélico­s”

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Shuttersto­ck Estátua de Martinho Lutero em Erfurt, Alemanha

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