Folha de Londrina

Ato obsceno no Bosque

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Um casal de namorados no Bosque chama minha atenção às 7 da manhã. Eles dividem um banco, ela quase em cima dele, com as pernas enroscadas. Beijam-se como se fosse a primeira ou a última vez, ele um pouco mais velho, com a cabeleira cinza, ela negra e jovem, bonita.

No entorno uma mulher passa apressadam­ente, cumpre voltas de atividade física na quadra de esportes. Um homem passeia com seu cão, uma criança lava a pequena mesa onde as duplas jogam pingue-pongue sob o sol ainda fraco. O barulho de água do balde não perturba o casal, um latido não chama sua atenção. Nada parece perturbar os namorados que continuam abraçados, eu os vejo do sexto andar do prédio em frente.

Um galo canta num quintal nas proximidad­es, os carros freiam mais, o dia começa no centro de Londrina com buzinas seguidas e o vozerio dos que estão nas sacadas ou atravessam a rua disputando espaço entre os automóveis.

O casal sai do banco e se protege atrás das árvores. Em idílio com o tempo, os dois parecem não ter pressa, beijam-se como se o mundo parasse, esfregam-se como se o contato do corpo fosse capaz de tirar faíscas e incendiar o quarteirão. No sexto andar dá para sentir o clima do namoro, a temperatur­a que sobe a cada vez que se entrelaçam atrás das árvores, ela com a cabeça encostada na dele, sussurram coisas que não posso ouvir, mas imagino como um diálogo apaixonado:

Ela suspira, chega ainda mais perto do parceiro e diz coisas que parecem frases entrecorta­das.

Lembro-me dos primeiros meus namoros, de mãos dadas entre as árvores como se cada raio de sol pudesse ser tomado como um oásis particular. Depois, imagino que os olhos deles brilham, ainda que não os veja cara a cara, mas pelo balanço do andar dá para sentir que não têm nenhuma pressa.

Um urubu voa mais baixo, assusta momentanea­mente o casal que dá a volta pela rua oposta a que se encontrava. Desaparece­m como se tivessem coisa mais importante a fazer do que tornar pública sua paixão e reaparecem num banco próximo onde os vi pela primeira vez. Quase às oito horas ainda formam o par mais quente da praça.

Trocam beijos e afagos como se não tivessem horário para chegar ao trabalho e nenhum compromiss­o em plena terça de manhã.

Ele de cabeleira cinza, ela negra e linda formam o casal mais bonito do pedaço, nem mesmo os estudantes que às vezes namoram por ali ganham em beleza e harmonia.

Mais um pouco e os vejo desaparece­rem atrás da árvore mais alta do Bosque. A peroba-rosa, mais imponente que os prédios altos da cidade, forma o refúgio perfeito para dois seres que se amam sumirem atrás de seu tronco que tem a largura de quatro ou cinco homens perfilados. O casalzinho se esconde atrás dela, ambos sem roupas, como vieram ao mundo, trocam mais beijos, percebo que estão se amando com um arroubo que desconhece o risco de serem flagrados por alguém que cruze o local em direção à Catedral ou à padaria mais próxima.

Ainda é cedo para pensar num flagrante e ainda menos num escândalo que faça os conservado­res que dão blitze em praças correrem para noticiar nas redes sociais que “um casal cometia atos vergonhoso­s em plena luz do dia”. Imagino-os chamando a PM, a Guarda Municipal, convocando as famílias, os padres e pastores para a grande cruzada que há de vir nesse tempo em que nada mais é pecado, no qual as paixões acendem fósforos que se transforma­m em fogueiras nas quais alguns querem enfiar os outros como quem queima a perdição.

Enquanto todo esse enredo me passa pela cabeça - e já penso em escrever um romance mostrando a quantas andam a malícia humana e o desejo contido de amar como um casal “sem vergonha” - percebo um leve movimento de folhas e dois pombos do Bosque aparecem satisfeito­s, quase risonhos, com a certeza que o verão trará à luz mais alguns filhotes. Ele, de cabeleira cinzenta, ela, negra e linda.

Aliviada, penso que desta vez os bichinhos escaparam dos patrulheir­os do MBL e que nenhum boletim de ocorrência será lavrado na delegacia mais próxima por “ato obsceno em praça pública.”

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Ilustração: Marco Jacobsen

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