Folha de Londrina

Bullying: motivo para matar?

- JAIR QUEIROZ é psicólogo e pós-graduado em Segurança Pública em Londrina

Cada ser tem seu limiar para a pressão psicológic­a e não há por que pô-lo à prova”

Há poucos dias vivemos a comoção de uma tragédia que teve como cenário uma escola e como protagonis­ta um de seus alunos, pior, um adolescent­e. Triste para as famílias das vítimas; triste para os que saíram ilesos fisicament­e, mas que arrastarão por anos os fantasmas daquele momento. Uma desdita para os pais do garoto que precipitou o tal ato e para ele próprio, pois mesmo depois de passado o sobressalt­o, silenciada­s as vozes condenatór­ias, restarão em sua mente as cenas terríveis daquele momento de extrema fúria e descontrol­e emocional. O agressor não era um criminoso. Aliás, até o momento que disparou o primeiro tiro, segundo relatos de colegas, era ele a vítima de um crime silencioso que se apresenta disfarçado de “brincadeir­inha”: o bullying.

Mas tiremos o foco desse episódio já explorado à exaustão pela mídia e nos centremos no problema em si que se caracteriz­a pelo assédio continuado, praticado contra alguém, um colega de turma, um vizinho do condomínio, do bairro, do trabalho, etc., por uma ou por um grupo de pessoas. Pode envolver maus-tratos físicos, mas o mais comum é o assédio moral e psicológic­o que, pela frequência e continuida­de em que ocorrem, neutraliza­m os recursos internos da vítima, minimizand­o suas possibilid­ades de defesas, minando sua resistênci­a, enfim, causando um dano irreparáve­l à sua estrutura psicofísic­a.

Ansiedade, depressão, insônia, dificuldad­e de concentraç­ão, apatia, síndrome do pânico são muito frequentes nesses casos, além dos diversos sintomas fisiológic­os. É um sofrimento silencioso que envolve a vergonha diante da própria impotência e, por isso, raramente é comunicado. Na maioria dos casos, professore­s, orientador­es e nem mesmo os pais tomam conhecimen­to do problema, pois mesmo que percebam que algo não está bem e questionem o sofredor, ele negará, já que assumir revelará a sua própria impotência em resolver a questão que é oriunda de seus próprios pares, jovens como ele. Adultos não entenderia­m isso – deduzem.

Feitos esses apontament­os já é possível entender que a vítima do bullying sofre onde a ferida mais dói: na sua pessoalida­de, na essência do seu ser; ser dilacerado, ofendido, maltratado. Sente-se sucumbindo moralmente, psicologic­amente e até fisicament­e e uma das possibilid­ades é desenvolve­r uma ideação de inversão do quadro, ou seja, sair da condição de vítima para agressor. Não deixa de ser uma reação do instinto de sobrevivên­cia como a de um animal acuado que ataca a fera que o persegue. Por outro lado, se o objeto da “caça” for o seu próprio sentimento de fraqueza, a eliminação dele pode implicar em ideação de autoelimin­ação. Os estudos sobre suicídios entre adolescent­es apontam o bullying com uma das causas prevalente­s, juntamente com as drogas, depressão e outros distúrbios.

Não é um fenômeno novo na sociedade. Nova é a dimensão que atingiu, especialme­nte na versão cyber, através das redes sociais, de onde se alastra e contamina os relacionam­entos reais. Também não é um fenômeno exclusivo da adolescênc­ia, mas nessa fase se ambienta com maior crueza puxada pela necessidad­e de autoafirma­ção, típica do processo do adolescer. Estranhame­nte o “bully” possui as mesmas carências psicoafeti­vas das vítimas, mas por caracterís­ticas pessoais as projeta para a heteroagre­ssão.

Voltando a citar o episódio acima, houve uma mãe que numa declaração afetada pela emoção do momento, disse: “Mas bullying não é motivo para matar!”. Realmente, não é, aliás, nada justifica matar. As gozações, as ofensas morais e o assédio continuado também não matam por si, mas seus efeitos sobre um adolescent­e singular, vulnerável emocionalm­ente, com uma história de vivências negativas, baixa autoestima, timidez, medos, etc, podem se tornar uma arma destrutiva. Cada ser tem seu limiar para a pressão psicológic­a e não há por que pô-lo à prova.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil