ACEITAÇÃO -
Pais e escola são corresponsáveis na construção de uma sociedade que reconhece as diferenças como um valor intrinsecamente humano
Igualdade de oportunidades é a base da educação inclusiva. Especialistas alertam que a responsabilidade pelo acolhimento de crianças com qualquer tipo de deficiência deve ser compartilhada: colegas, professores, pais e sociedade em geral. Ana Laura, 4, que tem síndrome de Down, não sofre rejeição no centro de educação infantil. “Acho importante ela conviver com outras crianças que não têm nenhuma limitação”, aponta a mãe Elisângela Lourenço
‘As crianças aprendem com modelos. E qual é o modelo que pais, professores e sociedade estão passando para elas?” A partir dessa reflexão, a psicopedagoga em Londrina, Maria Edwirges Guerreiro Leme, mergulha no universo da educação inclusiva que ainda é habitado por muitas indagações. E também por atitudes que muitas vezes passam indiferentes no dia a dia, em pequenos gestos, uma palavra mal colocada ou mesmo um olhar. “Deixamos de ser inclusivos quando repetimos o que a sociedade fez em anos anteriores. Só vamos mudar quando olharmos para qualquer pessoa e não vermos as diferenças”, contextualiza.
A busca por uma resposta para o questionamento feito pela psicopedagoga tem sido uma missão de uma mãe em Londrina. A forma que ela encontrou para interromper um ciclo de rejeição que a filha vinha sofrendo pelos colegas de classe foi trocá-la de escola.
A mulher, que não quer ser identificada, explica que a filha tem uma doença genética progressiva que afeta a marcha. A partir dos cinco anos de idade, o quadro se agravou, evidenciando situações de exclusão na escola. “Como não consegue brincar de correr e pular, ela fica sozinha. Ninguém quer mudar de brincadeira e também não quer lanchar com ela. No começo ela até me contava, mas depois parou de falar porque estava sofrendo”, revela.
Ao preparar uma festa de aniversário e nenhuma das amigas de sala comparecer, a mãe compartilhou toda a dor da filha. Em tom de mágoa, questiona a educação que os pais têm dado aos filhos e o papel da escola enquanto um ambiente de formação do cidadão. “Em termos de acessibilidade, a escola buscou toda adaptação necessária, mas a inclusão está além disso. Não culpo a escola, mas acho que faltou um trabalho de aproximação, inclusive com os pais dos alunos. Eu pedia muito isso. Isso me mostra que a sociedade não está preparada para a verdadeira inclusão”, desabafa.
E de quem é o papel na educação inclusiva? Essa tem sido uma questão estudada há mais de duas décadas pela psicopedagoga em São Paulo, Raquel Paganelli Antun, mestre em educação inclusiva. Ela conta que tempos atrás o fato de a deficiência ser centralizada nas características do indivíduo fazia com que as pessoas se isentassem das responsabilidades.
Mas esse entendimento não é mais aceitável, pois a perspectiva clínica (limites e dificuldades da criança) integra um novo modelo social da deficiência, onde os fatores externos, desde a arquitetura do ambiente, comunicação e atitude das pessoas, são cruciais. “Hoje, todos são considerados responsáveis. Cada um tem participação no fracasso ou no sucesso escolar e na autonomia de vida como um todo dessas crianças”, sustenta.
Essa virada de chave foi em 2006, com a publicação da convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre os direitos das pessoas com deficiência. “Foi um marco para a educação inclusiva no Brasil”, destaca.
A psicopedagoga Leme, que tem inclusive experiência na formação de profissionais, complementa que a educação inclusiva é um compromisso educacional e social que não tem o parâmetro apenas de adaptações, mas também da qualidade de atendimento, das relações e a garantia do direito público e subjetivo. “É uma reflexão constante sobre o que realmente é importante no atendimento a essas crianças. A pergunta que todos devem fazer é: quais são as oportunidades que estamos dando para elas, enquanto pais, sociedade e escola?”
FLEXIBILIZAÇÃO
A base da educação inclusiva é a igualdade de oportunidades e, para Antun, os educadores devem considerar o contexto, interesses e características das crianças em sala de aula, diversificando e flexibilizando as atividades e estratégias de avaliação. “O currículo não pode ser fechado”, ressalta.
Ela frisa que as leis brasileiras garantem o direito de acesso da criança com deficiência na escola regular e de participação e igualdade de condições, vislumbrando o pleno potencial de desenvolvimento. “Nesse processo está claro que a criança deve estar incluída no ambiente escolar com dignidade”, aponta.
A diarista Elisangêla Aparecida Lourenço sabe dos direitos da filha Ana Laura, 4, que tem síndrome de Down, mas conta que teve receio ao matriculá-la no CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil) Valéria Veronesi, no centro de Londrina.
“Meu medo era dela não ser bem aceita, de sofrer rejeição”, conta a mãe, que hoje, depois de um ano, afirma que tem sido uma experiência incrível. “Ela foi muito bem recebida e é querida por todos, interagindo e participando de tudo. Acho importante ela conviver com outras crianças que não têm nenhuma limitação até porque é um direito dela”, completa.
A diretora do CMEI, Claúdia Maria Roverato de Moura, reforça que a educação infantil prima pela socialização e que a segregação e o preconceito não são naturais da infância. “Esse é um comportamento que é revelado ao longo do nosso desenvolvimento. E o fato da criança com deficiência ser inserida no contexto escolar regular faz com que ela tenha muitos estímulos, ganhando autonomia e reduzindo dificuldades para quando chegar ao ensino fundamental”, comenta.
A mãe de Ana Laura se orgulha da curiosidade e disposição da filha e faz questão de acrescentar que o papel de socializá-la e desenvolvê-la em sociedade é deles (pais) e da escola. “Medo todo mundo tem. A gente sabe que em muitas situações vamos ter que conversar abertamente com ela, assim como com qualquer outra criança e a escola também tem que cumprir esse papel”, salienta.
Aespecialista em educação inclusiva, Raquel Paganelli Antun, de São Paulo, observa uma tendência nas escolas em padronizar estratégias de avaliação e defende que isso precisa ser mudado. “É necessário experimentar outras possibilidades, como, por exemplo, provas orais, para que as crianças consigam se expressar de outras formas”, aponta. Ela também comenta que é comum a prática de reduzir o conteúdo para algumas crianças por achar que não são capazes de aprender. “O caminho não é esse. É preciso ter altas expectativas para todos”, completa.
Sobre dicas de atividades, Antun responde que não há receita pronta, mas cita que a dinâmica deve ser sempre pautada na valorização das diferenças. “Quando o professor tem uma atitude de abertura e valorização às diferenças, as crianças acabam incorporando isso”, reforça.
Para a psicopedagoga, esse comportamento tende a ser mais efetivo do que um momento pontual, como uma conversa sobre deficiência, que pode evidenciar muito mais aquela criança como sendo a única diferente e reforçando uma situação de bullying ou de exclusão. “Com isso, as crianças que não têm deficiência, mas que estão de alguma forma sendo excluídas do grupo, também vão ser trazidas para perto e todos vão crescer como cidadãos muito mais conscientes de que precisamos de uma sociedade incluída”, salienta.
Uma dica simples, segundo ela, é colocar alunos com ritmos diferentes no mesmo grupo para trabalharem juntas, reconhecendo que as diferenças enriquecem o processo o educacional.
FAMÍLIA
A família também deve ser envolvida nas estratégias e objetivos de aprendizagem. “O planejamento que o professor desenvolve antes mesmo de conhecer os alunos está fadado ao insucesso. Ele precisa envolver a família nesse processo para descobrir, de fato, como cada criança aprende e quais são as melhores maneiras de avaliá-las. A família e a escola devem caminhar lado a lado, vislumbrando objetivos comuns: a participação e autonomia da criança e o pleno desenvolvimento de suas capacidades”, finaliza.
Antun é membro do projeto Diversa, uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes, em parceria com o Ministério da Educação, entre outros, para troca de experiências e construção de conhecimento sobre a inclusão de alunos com deficiência na escola regular.