Folha de Londrina

A novela ‘A força do querer’ foi uma grande aula

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A novela “A força do querer” gerou muita polêmica. Abriu a oportunida­de para que as pessoas tocassem em um assunto árduo e silenciado, seja pelo desconheci­mento, seja pela dificuldad­e emocional de tocar no tema transexual­idade ou ainda por puro preconceit­o. Compreendo que é difícil alcançar o entendimen­to e a aceitação da transexual­idade. Muitos ainda nem sequer conseguem compreende­r que a homossexua­lidade é da natureza humana - e também dos animais - e que não é doença, nem transtorno e que nada diferencia uma pessoa homossexua­l de uma heterossex­ual.

Quem pôde acompanhar a novela teve a oportunida­de ímpar de “ver de perto” - na personagem Ivana que, depois de jovem, se tornou Ivã - o sofrimento que vivencia uma pessoa, criança ou jovem, que não se reconhece como sendo do sexo que seu corpo biológico anuncia. É uma forte rejeição ao seu próprio corpo, uma necessidad­e imperiosa de mudá-lo, externamen­te, a fim de que ele fique coerente com o que a pessoa se reconhece cognitiva e psiquicame­nte, para encontrar seu equilíbrio emocional. A novela deu a oportunida­de de “acompanhar de perto” o sofrimento de uma família, ao se deparar com uma filha, que se torna um homem trans. Fica claro que o fato de a família não ter conhecimen­to prévio de que a transexual­idade faz parte do humano, tornou mais profundo, do que normalment­e já é, o seu sofrimento e também o da jovem. De forma belíssima, “A força do querer” ilustrou o quanto o apoio e a aceitação da família foram fundamenta­is para o Ivã vivenciar seu processo de mudança.

Diferentem­ente do Oriente, que aprimorou a arte de fazer sexo, desde longa data, a cultura Ocidental, da qual fazemos parte, se preocupou com a identifica­ção e classifica­ção de doenças no campo da sexualidad­e, separando o que é normal e o que é patológico. Contudo, é urgente que nos abramos para compreende­r o ser humano em sua totalidade, o que só se alcança quando nos desafiamos a olhar para a riqueza de sua diversidad­e, sem tabus, sem resistênci­a moral e com a mente e o coração abertos. Asseguro que alcançar isto traz alegria e enche o espírito de paz.

Vale ressaltar uma parte desafiador­a da novela: na condição de Ivana, a personagem foi namorada de Cláudio, um rapaz reconhecid­amente heterossex­ual, com quem formava um par apaixonado. Embora se amando, separaram-se a pedido de Ivana. Acabaram por ficar juntos, no final da novela, após ela ter-se tornado um homemtrans. Seria Ivã, homossexua­l, então? E Cláudio? Seria bissexual? A princípio é o que pareceu. Mas não dá para afirmar. O que mais importa e é mais seguro afirmar é que, em primeiro lugar, eles se amavam e se queriam como pessoas, como parceiros para viver uma vida juntos; para eles, o sexo e a aparência física ficaram em segundo plano. O Ivã modificou seu corpo, mudou seu nome, mas a sua essência permaneceu. E foi isso que sua mãe e seu pai conseguira­m descobrir e, por isso, continuara­m a amá-lo. Já afirmou Fernando Pessoa: “O amor é que essencial, o sexo, um acidente. Pode ser igual, pode ser diferente”.

Por que a sociedade tem tanto medo de deixar vir à tona este assunto? Por que tanto medo de falar a respeito? Conhecer sobre a transexual­idade não vai levar nenhuma criança, nenhum adolescent­e a querer mudar de sexo; vai, outrossim, formar pessoas que compreende­m pessoas e, por isso, abertas ao acolhiment­o e avessas ao bullying, o que traz melhoras no relacionam­ento humano, consequent­emente, paz.

Seja na personagem Nonato, um rapaz que se travestia para apresentar-se artisticam­ente, ou na mulher viciada em jogos de baralho, ou na moça que, apaixonand­o-se por um bandido traficante, arruinou a sua vida, “A força do querer” trouxe para perto de nós o que existe na vida real. Vivências como essas podem nos levar a pensar e a crescer como pessoas, se quisermos, se estivermos dispostos a refletir, sem medo.

MARY NEIDE DAMICO FIGUEIRÓ é psicóloga, doutora em Educação e professora Sênior da UEL

Conhecer sobre a transexual­idade não vai levar nenhuma criança e nenhum adolescent­e a querer mudar de sexo”

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