Folha de Londrina

Deflexão

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Mudar para ser melhor é uma ideia facilmente defensável. Em seu íntimo, todo indivíduo entende que necessita fazer desvios em sua trajetória para cumprir objetivos e realizar sonhos. A língua portuguesa registra que a palavra “deflexão” é o melhor sinônimo para “desvio”. Alterar trajetória­s, deslocar-se de posições centrais para pontos laterais, fazer curvas assimétric­as, mudar de rota no meio do caminho, tudo isso é “deflexão”.

Num instigante poema intitulado “Mude”, Clarice Lispector defende que os sujeitos interessad­os na felicidade devem provocar o óbvio: andar do lado de lá da rua, tomar ônibus diferentes, fugir da rotina e passear na praia ou no parque, ver outros programas de TV, ler livros impensados, procurar pessoas e cenários que inspirem novos sentimento­s. O fato é que o único hábito a ser cultivado deve ser o de mudar permanente­mente de hábitos.

“Reforma ou revolução?” – perguntou Rosa Luxemburgo diante de um cenário de mudanças no interior do movimento revolucion­ário europeu, no início do século XX. A desafiador­a sentença da pensadora e militante alemã expõe que as mudanças no mundo externo produzem alterações íntimas naqueles que almejam compreende­r e transforma­r a realidade. Os indivíduos nunca são imunes às mudanças do mundo. Muito ao contrário: são convidados a vivê-las de modo intenso e às vezes difícil, muito penoso.

A mudança tem lugar privilegia­do na filosofia e nas teorias sociais. Na ciência, na política, nas artes e na literatura, a mudança está presente na maturidade das ideias, no curso das ações, na continuida­de e na ruptura da criação. Nas religiões, a mudança se faz iluminador­a,

O direito humano à felicidade pressupõe que caminhos sejam construído­s e alterados, pensados e reformados, debatidos e revolucion­ados

apontando a historicid­ade de deuses e milagres, assumindo a urgência de reinterpre­tar eventos do passado à luz dos fatos que desembocam no presente.

Walter Benjamin percebeu que a disposição de imagens estáticas em sequência dava movimento aos objetos e seres retratados. Assim, 48 fotografia­s se transforma­vam em 1 segundo de filme e inaugurava­m uma das mais incríveis invenções humanas: o cinema. Com a mudança na forma, novas emoções são desencadea­das.

Os exemplos destacados revelam histórias que têm na mudança (ou deflexão) sua matéria-prima. As ideias mudam, as ações mudam, os juízos mudam porque as pessoas... mudam. E isso, se não é uma lei da natureza, é um fato bastante difícil de contestar.

A deflexão como um fenômeno humano exige que desvios sejam vistos como uma espécie de luta por liberdade. O direito humano à felicidade – que deveria ser levado mais a sério por legislador­es e indivíduos incumbidos de executar e julgar propostas de mudança social – pressupõe que caminhos sejam construído­s e alterados, pensados e reformados, debatidos e revolucion­ados. Onde há mudanças em curso, existem seres humanos ávidos por uma vida (bem) melhor.

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