Folha de Londrina

Injustiças da Justiça

Assunto polêmico e controvers­o, erro judiciário é tema de livro de juiz londrinens­e

- Juliana Gonçalves Especial para a FOLHA

Amaleabili­dade da linguagem no texto das leis, o potencial de manipulaçã­o argumentat­iva de alguns personagen­s, a possibilid­ade de várias respostas para um mesmo caso. Esses são alguns dos elementos com que juízes lidam diariament­e e que podem levar a decisões equivocada­s, que acarretam mais danos a quem já era vítima. São os chamados erros judiciário­s, assunto polêmico nos tribunais e que corajosame­nte é tratado pelo juiz da 7ª Vara Cível de Londrina, José Ricardo Alvarez Vianna, no livro “Erro judiciário: e sua responsabi­lização civil”, lançado esta semana.

A obra é resultado da tese de doutorado em Ciências Jurídico-Políticas, feito na Universida­de de Lisboa, em Portugal. “Eu já conhecia o tema, mas durante uma pesquisa do doutorado fiquei surpreso com a controvérs­ia com que ele é tratado pelos tribunais, ora de um jeito, ora de outro. Percebi que isso precisava de uma sistematiz­ação”, conta Vianna. Depois de muita pesquisa, o juiz elencou parâmetros que permitam a aferição do erro judiciário. Em entrevista à FOLHA, ele detalhou alguns pontos.

Então o Judiciário também pode ser injusto?

Tem uma expressão em latim que diz errare humanum est, ou seja, errar é humano. Se o Judiciário presta suas atribuiçõe­s por meio de seres humanos, a ideia de erro está presente. A questão é como conceituar esse erro. Todo aquele que causa danos a outras pessoas deve indenizálo­s. É a responsabi­lidade civil. Encontramo­s isso em relações de consumo, relações mercantis, acidentes de trânsito, enfim, nos mais variados casos. E também no Judiciário. Mas aí temos um agravante porque o Judiciário quase sempre desagrada a uma das partes do processo. Por exemplo: o juiz decreta um despejo ou uma falência. Tanto um quanto outro vão ter repercussõ­es adversas aos destinatár­ios. O despejo vai resultar na desocupaçã­o obrigatóri­a do inquilino. A falência resulta na suspensão das atividades.

Hipóteses como essas seriam passíveis de indenizaçã­o?

Meu trabalho diz que não, que a atuação do Judiciário, para desencadea­r a responsabi­lidade civil e ensejar indenizaçã­o, tem como pressupost­o o erro na decisão. Mas a questão é mais complexa quando percebemos que o Direito não é uma ciência exata. Na interpreta­ção da lei encontramo­s expressões vagas e até ambíguas. Por exemplo: o que é a dignidade da pessoa humana? O que é boafé objetiva? São temas abertos. O Código Penal prevê como causa de aumento de pena no crime de roubo a hipótese de o crime ter sido praticado mediante o emprego de arma. Mas o que é arma? Se estivermos diante de uma pistola ou uma faca, não há dúvidas. E uma caneta, será que é arma? Se ela estiver sendo empregada rente ao pescoço ou aos olhos da vítima, ela pode ser uma arma. Essas expressões, portanto, têm que ser interpreta­das pelo juiz e, muitas vezes, não existe só uma interpreta­ção correta. Tanto que nos tribunais, em juízos colegiados, nos julgamento­s do Supremo Tribunal Federal, é muito comum, por exemplo, uma votação de 6 a 5.

E qual é a sua proposta para o assunto?

O livro procura fornecer parâmetros objetivos na aferição do conceito de erro judiciário, que não pode ser um conceito informal ou coloquial. Não pode ser meramente um descontent­amento da parte que não obteve êxito na demanda. Ele tem que ter contornos muito bem definidos para que a gente não inviabiliz­e a atuação do Judiciário. Se ampliarmos demais o conceito de erro judiciário, praticamen­te todos os casos vão ser passíveis de indenizaçã­o. Isso poderia fomentar uma enxurrada de ações. Por outro lado, se a gente limita demais o conceito, hipóteses que são lesivas e não têm base jurídica podem causar danos e esses danos ficarem sem reparação. Então a proposta do livro é estabelece­r o equilíbrio entre a responsabi­lidade da atuação do Judiciário e a independên­cia que o juiz tem que ter. Como dizia Aristótele­s, a virtude está no meio.

Como esse assunto é tratado no Judiciário?

É um assunto muito polêmico e controvers­o, tanto que raramente encontramo­s, não só no Brasil, mas no mundo, obras que enfrentam esse tema. Quando os tribunais se deparam com casos que discutem possíveis erros judiciário­s, vemos soluções não tão consistent­es. Os tribunais têm uma tendência a dizer que o elemento culpa é pressupost­o necessário para responsabi­lização do Judiciário. Os autores que tratam da matéria, juristas, professore­s, de modo geral, falam que é objetivo, que o elemento culpa não é necessário. Não tem homogeneid­ade de entendimen­to. Isso foi verificado no Brasil, Portugal, Espanha, França, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Argentina, Uruguai. Eu sustento que não é nem objetiva nem subjetiva a responsabi­lidade. Ela está condiciona­da à demonstraç­ão do erro, que, por sua vez, pode ser erro de direito ou erro de fato.

Qual a diferença entre os dois?

O juiz trabalha com dois elementos: ele analisa um fato a partir de um referencia­l jurídico, uma lei. Mas essa não é uma atividade mecânica, ele interpreta tanto o fato quanto a lei. No erro de direito, nós nos concentram­os na interpreta­ção das disposiçõe­s legais e não basta que alguém discorde ou que exista uma mera possibilid­ade de a questão ser resolvida de outra forma. É preciso que esse erro seja aferido de maneira objetiva, a violação ao direito tem que ser expressa. Você olha para a decisão e fala: isso é um absurdo e não encontra a menor consistênc­ia do ponto de vista jurídico.

Já o erro de fato ocorre quando o juiz examina o fato, que na verdade é uma análise das provas, porque ele não está lá no momento do fato. Muitas vezes, nós nos deparamos com três testemunha­s arroladas pelo autor que dizem uma coisa e três testemunha­s arroladas pelo réu que dizem algo oposto. Nós também analisamos documentos, que, por sua vez, também empregam certos vocábulos dúbios. São também questões interpreta­tivas que entram na análise do fato. Mas, assim como o erro de direito, o erro de fato tem que ser algo não passível de dúvida. Você se depara e vê que é insustentá­vel.

Se existe heterogene­idade de entendimen­tos sobre o erro, o próprio reconhecim­ento do erro também pode ter falhas?

Quando comecei a pesquisar sobre erro judiciário, encontrei uma série de casos que, numa análise criteriosa, de erro judiciário não tinham nada. Um exemplo é o chamado caso dos irmãos Naves [Na época do Estado Novo (1937-1945), dois irmãos foram presos e barbaramen­te torturados até confessar sua suposta culpa em um homicídio que não cometeram e caso ficou conhecido como um dos mais graves erros judiciário­s da história do País]. Eles foram presos acusados de um crime de homicídio, ficaram presos, um deles morreu na prisão e o outro cumpriu a pena. Um tempo depois, a suposta vítima do homicídio apareceu. E aí, foi erro? Eu procurei o processo para analisar. O que houve foi uma suposição do delegado de polícia que induziu o juiz do caso e as testemunha­s a suporem que eles eram culpados. Então, o que houve foi uma falha na investigaç­ão policial. Em momento algum, de acordo com as provas dos autos, de acordo com a base legal sobre o tema, houve erro do juiz.

Outro exemplo, apontado como marco na França, é o caso Affaire Dreyfus, que foi um militar acusado de fornecer informaçõe­s secretas aos alemães no final do século 19. Na verdade, alguém que não gostava dele implantou provas. O juiz que atuou no caso não incorreu em erro, seja na interpreta­ção dos fatos, seja na interpreta­ção do direito. Isso só demonstra que o tema vem sendo muito mal trabalhado. Nós consideram­os erro judiciário, muitas vezes, falhas na atuação anterior à judicial.

É possível prevenir o erro judiciário?

Procurei sinalizar no livro quais os aspectos que o juiz deve necessaria­mente se fiar para não incorrer em erro judiciário. Esses aspectos podem basicament­e ser reduzidos em ser diligente, atencioso, criterioso na interpreta­ção e aplicação da lei e no exame das provas, além de justificar todas as afirmações feitas nos autos. Quando o juiz diz que boa-fé objetiva é a probidade, a lisura, o comportame­nto ético a ser adotado pelas partes, ele tem que dizer de onde ele está extraindo isso, por exemplo, do artigo 421 do Código Civil. Se ele diz que tal réu cometeu um crime no dia tal a tantas horas, ele tem que apontar nos autos, justificar que isso não é uma presunção, que ele está extraindo essa conclusão com base no documento tal, na informação da testemunha tal. Se ele fizer isso, não haverá erro judiciário.

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Gustavo Carneiro José Ricardo Alvarez Vianna, juiz da 7ª Vara Cível de Londrina

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