Direito de permanecer calado
A prerrogativa do silêncio é uma regra constitucional e, como parte do arcabouço dos direitos fundamentais, deve ser entendida de forma a alcançar a sua maior eficácia – diga-se, não se restringir aos presos. Infelizmente, em tempo de pós-verdades o que pouco se vê é o efetivo exercício desse direito.
Importante lembrar que todo ser humano já nasce com direitos e garantias que não devem ser considerados concessão do Estado. A dignidade da pessoa humana é um desses. Para fortalecê-la, a evolução do Direito chegou à chamada quarta geração ou dimensão do direito. Oriunda do grande desenvolvimento tecnológico, ela busca garantir responsabilidades, manutenção da paz, garantia à democracia e à informação, à ética.
Nesse contexto, a palavra queridinha do momento, a pós-verdade - ganha força. De modo simplório, ela diz respeito a dar mais importância às crenças pessoais do que a fatos objetivos. Assim, alimentar o “feed” de notícias na sua rede social com boatos, com mentiras, é um comportamento que precisa ser abandonado. No mundo virtual, as mentiras têm se travestido com a falsa assinatura de personalidades como Trump, Obama, papa Francisco. Ganham o mundo “por apenas” uma mera fração de tempo. Logo, dão lugar a outro boato. E, desse modo, parte da essência da vida em sociedade vai se perdendo: a solidariedade e o respeito.
Na esfera coloquial, há aqueles que viveram a expressão “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”. O clichê vai ao encontro da garantia constitucional de livre manifestação do pensamento. Ocorre que o mesmo texto assegura direito de resposta proporcional ao agravo bem como proíbe o anonimato. Ou seja, há, e precisa mesmo haver, limitações para que tal direito seja assegurado. A manifestação do pensamento se dá pela linguagem, não apenas falada, mas pelas múltiplas formas em que se apresenta. Recentemente, sua manifestação, e a contestação de ser ou não arte, foi o centro da celeuma no museu do MAM, em São Paulo, ou às margens do Lago Igapó, em Londrina.
Ainda mais recente foi o fato de o STF se manifestar de forma contrária à posição histórica do Ministério da Educação que, no edital do Enem, trouxe o alerta de que redações que apresentassem manifestações ofensivas aos direitos humanos seriam punidas com nota zero. Como se houvesse previsto a querela, a prova do Enem 2017 trouxe o tema sobre a surdez. Um tema pontual no meio do universo de mais de 40 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência. A ofensa aos direitos humanos é comportamento típico dos reacionários, por isso, coerente o edital do Enem bem como o tema da redação. Entretanto, a decisão da corte parece não considerar a manifestação do silêncio como fonte de respeito.
De um lado, a justiça surda, do outro, usuários, especialmente, das redes sociais, muito barulhentos. Aquela parece não ouvir que os R$ 51 milhões apreendidos na casa do ex-ministro Geddel Vieira seriam suficientes para bancar por 10 anos o desmatamento na Amazônia, ou instalar 17 mil painéis fotovoltaicos ou ainda 12 anos de pesquisa sobre a biodiversidade brasileira. Que dizer dessa surdez quando peritos da Polícia Federal afirmam que as operações financeiras averiguadas nas investigações da Lava Jato podem ser da ordem de R$ 8 trilhões? Mas para isso não apenas o Judiciário, mas também o Executivo e o Legislativo se fazem de surdos. Até mesmo quem deveria se manifestar prefere proferir impropérios sobre a pedinte Lucimara, que ainda que tivesse ido à praia no Rio de Janeiro, não merecia ter sido vítima da pós-verdade, ainda mais de gente desprovida de valores outros, fundamentais a quem respeita a dignidade da pessoa humana, mas ausentes em quem pouco tem a oferecer a não ser migalhas materiais para inflar o próprio ego. Visitando o respeitado Millor Fernandes “o perigo da meia verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira”. Direitos são conquistas que merecem ser valorizadas. Porém, não é direito a surdez a favor da corrupção nem a manifestação do pensamento na forma de fake news.
Não é direito a surdez a favor da corrupção nem a manifestação do pensamento na forma de fake news” REGINALDO JOSÉ DA SILVA é biólogo pós-graduado em Análise Ambiental e Policial Militar em Londrina