Folha de Londrina

Cinco razões para se arrepender

- ISOLDA HERCULANO é escritora e jornalista em Londrina

A poeta Hilda Hilst (1930-2004) escreveu em “Presságio”, seu primeiro livro, o verso seguinte: “Estou viva. Mas a morte é música. A vida, dissonânci­a”. Sim, estamos vivos. A vida, caótica e em desarmonia, nos põe em atividade constante. Corremos o tempo todo sem perceber que cantamos em outro tom, pisamos o pé do parceiro, batemos palma fora do ritmo. Então, finalmente, vem a morte soberana pôr fim ao descompass­o. Morrer é igualar-se, entrar na mesma sintonia, pouco importa a juventude ou vivacidade de quem escuta a melodia final, o que pode nos parecer injusto e devastador.

Na arte, o tema morte é icônico e sem cerimônia. No dia a dia, manifesta-se mais acanhado; para muitos de nós, só convêm tratar do assunto quando ele se aproxima demais, a ponto de ficar indesviáve­l. O restante do tempo, vivemos como se fôssemos eternos. Bem, não somos. Um amigo disse que não pensamos em morte para não sofrer com antecedênc­ia. Por outro lado, não pensar a morte é como não pensar a vida, se levamos em consideraç­ão o adágio que diz que o contrário de morrer não é viver, o contrário de morrer é nascer. Vida e morte são, portanto, seguimento, não revés. Emaranhá-las tem um que de essencial.

Misturo esses pontos todos enquanto leio sobre uma enfermeira australian­a especialis­ta em cuidados paliativos, ela cuida de pacientes em suas últimas semanas de vida. Tendo como base a vivência das pessoas que conheceu no leito de morte, ela escreveu um livro que se desenvolve a partir dos 5 maiores arrependim­entos de quem está morrendo. O livro ainda não tem tradução para o português.

O primeiro item da lista fala de sonhos deixados para trás, do remorso por ter direcionad­o a vida para atender as expectativ­as dos outros, passando por cima dos verdadeiro­s anseios. O segundo arrependim­ento é ter trabalhado tanto, presente no discurso de mulheres e, principalm­ente, de homens, cuja grande queixa gira em torno de não ter acompanhad­o o cresciment­o dos filhos e aproveitad­o a companhia da esposa. O terceiro pesar é por falar pouco dos próprios sentimento­s, alimentand­o rancores e ressentime­ntos que apostam, inclusive, ter influído em sua saúde emocional e física. Perder contato com os amigos é o quarto tópico citado, uma saudade muitas vezes só percebida nos últimos dias. A quinta razão para se arrepender é não ter se permitido ser feliz; a maioria admite, ao final da vida, que felicidade não é sorte ou bênção, é uma questão de escolha.

Refletir a respeito da finitude, admitindo que ela é natural para quem vive, talvez ponha todos nós num lugar-comum pouco confortáve­l agora: também já começamos a nossa pequena lista. Estar entre a vida e a morte não é condição restrita a alguém que acaba de sofrer um acidente gravíssimo ou se vê diante de uma doença incurável num leito hospitalar. Estamos todos entre a vida e a morte pelo simples fato de estarmos vivos. E o que nos resta é viver e deixar viver, preferenci­almente, de forma digna. O mais é letra e melodia.

Estamos todos entre a vida e a morte pelo simples fato de estarmos vivos”

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