Folha de Londrina

Camisa rasgada

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Quando o padre Rafael entrou na missa, todos notaram que ele levava alguma coisa nas mãos. Só descobrimo­s o que era no momento da homilia.

Depois da leitura do Evangelho, o padre trouxe consigo o tal objeto e disse:

— Nesta semana, durante a higienizaç­ão das roupas que foram doadas aos pobres pelos nossos paroquiano­s, as funcionári­as encontrara­m esta camiseta rasgada. Imediatame­nte eu pedi para ficar com ela. É a inspiração da minha homilia de hoje. Então o padre nos perguntou: — Que motivo leva alguém a doar uma roupa velha e rasgada aos pobres? O que faz essa pessoa acreditar que está realizando uma boa ação?

O silêncio das pessoas enquanto o padre fazia essas perguntas foi absoluto. Pareciame ouvir o exame de consciênci­a de cada um naquele instante. Ao final da homilia, retumbou um grande aplauso entre os fiéis.

A camiseta rasgada é o símbolo de nossa falta de caridade. Mais uma vez, lembreime da frase do Upanishad: “Tat tvam asi”. Você é isso. Todos os dias, nós falhamos ao doar farrapos àqueles que necessitar­iam do inconsútil. Oferecemos migalhas a quem pede o alimento verdadeiro. Damos água salobra a quem precisa matar a sede. Estendemos a mão só para recolhê-la no instante seguinte. Emprestamo­s o guardachuv­a quando o tempo está bom e o tomamos de volta quando começa a chover.

Não se trata de exigir perfeição de ninguém. Quem gosta de exigir que as pessoas sejam perfeitas é o diabo. O ponto aqui é saber se estamos realmente envolvidos naquilo que fazemos, naquilo que ofertamos ao mundo. O cerne de nossos atos está na intenção — no coração.

Você, cronista de sete leitores, está escrevendo com o coração nas mãos?

Você, professor, está dando uma aula que amplie o horizonte intelectua­l de seus alunos?

Você, médico, está ajudando a aliviar a dor do mundo?

Você, engenheiro, está construind­o uma obra com sólidos fundamento­s?

Você, advogado, está defendendo a real justiça?

Você, homem público, está contribuin­do para o bem da comunidade?

Você, jornalista, está procurando incessante­mente a verdade dos fatos?

Você, artista, está pensando nas consequênc­ias que a sua obra pode ter na vida das pessoas?

Você, funcionári­o público, está realmente servindo as pessoas?

Você, religioso, está procurando as coisas de Deus, e não as coisas dos homens?

A verdade é que somos seres decaídos; portanto, doaremos muitas camisetas rasgadas aos nossos irmãos. Essa falibilida­de faz parte da condição humana e tem um nome bíblico: pecado original.

Mais de mil pessoas estavam na igreja quando o padre nos mostrou a camiseta rasgada. Não duvido que naquele momento todos tenham pensado que poderiam ter sido os doadores daquele pedaço de pano. A consciênci­a do pecado é o pressupost­o para despertar a misericórd­ia de Deus; ignorá-lo é correr o risco de ouvir, no dia do julgamento:

“— Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes.” (Mt 25, 41-43)

O padre entrou na missa carregando algo nas mãos. Era a consciênci­a do nosso pecado

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