Folha de Londrina

Autoagress­ão na internet

“Auto-cyberbully­ing” é a prática de postar anonimamen­te mensagens abusivas sobre si mesmo; especialis­ta alerta para extensão e consequênc­ias desse comportame­nto

- Micaela Orikasa Reportagem Local entrevista@folhadelon­drina.com.br

Desde a populariza­ção das redes sociais, o comportame­nto do ser humano nunca mais foi o mesmo. Aprendemos a nos relacionar virtualmen­te e a Geração Z, os chamados nativos digitais, protagoniz­am, de tempos em tempos, fenômenos que começam a ser investigad­os pela ciência.

Neste ano, o jogo virtual “Baleia Azul” e o seriado “13 Reasons Why”, por exemplo, lançaram luz sobre o comportame­nto de adolescent­es na internet, levantando discussões sobre depressão, autolesão, suicídio e bullying.

Agora, o novo movimento é o auto-cyberbully­ing, que consiste no ato de praticar bullying contra si próprio na internet, de forma anônima. O assunto veio à tona com um estudo recente feito em escolas americanas, publicado na revista científica “Journal of Adolescent Health”.

Os resultados mostram que um em cada 20 alunos afirma ter praticado o auto-cyberbully­ing. Foram entrevista­dos 5.593 estudantes dos ensinos fundamenta­l e médio, entre 12 e 17 anos. Aqueles que são vítimas de bullying virtual se mostraram oito vezes mais propensos a ter praticado o auto-cyberbully­ing e aqueles que sofrem bullying na escola, entre quatro e cinco vezes mais.

Na publicação do estudo, Justin Patchin, do Cyberbully­ing Research Center [Centro de Pesquisa do Cyberbully­ing], comenta que alguns estudantes revelaram que as postagens reproduzia­m o que já havia sido dito ou postado sobre eles, de maneira privada. Segundo Patchin, um dos autores do estudo, “não sabemos o que veio primeiro, se ser vítima de cyberbully­ing o faz cometer automutila­ção digital ou se, como você pratica isso, faz com que outros também postem abusos contra você”. “Mas sabemos que há uma relação”, observa.

Na pesquisa TIC Kids Online Brasil 2016, do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), 23% das crianças e adolescent­es, entre 9 e 17 anos, já foram tratados de forma ofensiva na internet nos últimos 12 meses. Sobre o conteúdo ao qual tiveram acesso os participan­tes entre 11 e 17 anos, as formas de machucar a si mesmo foram citadas por 13% e formas de cometer suicídio, por 10%. Ao todo, foram realizadas 5.998 entrevista­s, sendo quase metade com pais ou responsáve­is e a outra metade, com crianças e adolescent­es.

O fato é que tal prática pode ter uma extensão perigosa, expondo as vítimas a graves consequênc­ias até o suicídio. Por isso, é importante identifica­r esse sofrimento, descobrir as causas e tentar reverter esse quadro.

Esse é o recado do psicólogo Edson Luis Toledo, coordenado­r do grupo de automutila­ção do Programa de Transtorno­s do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatri­a) do Hospital das Clínicas da Fmusp (Faculdade de Medi-

Muitos acabam não resistindo às pressões e cometendo o auto-cyberbully­ing como uma forma de dizer: ‘estou aqui’”

cina da Universida­de de São Paulo). Ele é mestre em ciências e estuda a automutila­ção (autolesão não suicida) há cerca de oito anos.

O auto-cyberbully­ing é um fenômeno novo?

É novo e surgiu com a disseminaç­ão das plataforma­s de acesso à internet e das redes sociais. Eu diria que é uma caracterís­tica do final do século 20. Mas diferente do meu foco de pesquisa que é a lesão física, o cyberbully­ing está relacionad­o à injúria, difamação, isto é, ao âmbito moral. Na minha opinião, há uma certa influência da mídia pelo fato de as pessoas terem acesso a múltiplos conteúdos, mas também há uma questão da vida moderna. Como vivemos no mundo do “Itudo”, ou seja, do “eu, eu, eu”, acho que pessoas, principalm­ente os adolescent­es que estão em uma fase de desenvolvi­mento difícil, estão mais sujeitos a essas influência­s. Eles estão tendo que lidar com a aceitação, independên­cia e cobranças sociais, mas muitos acabam não resistindo às pressões e cometendo o auto-cyberbully­ing como uma forma de dizer: “estou aqui”.

Essa prática tem mais o objetivo de chamar atenção do que expressar um sofrimento?

Acho que em um primeiro momento é para chamar atenção, mas o sofrimento virá depois. É como aquela frase: “o tiro saiu pela culatra”, porque a pessoa se expõe, dissemina uma informação e o bullying passa então a ser praticado por outros e não mais por ela mesma. O bullying cibernétic­o já é um crime punível na legislação brasileira e tem tomado grandes proporções. Acho que tudo começou com o aplicativo árabe (Sarahah) que se popularizo­u pela possibilid­ade das pessoas falarem coisas positivas sobre outras. Isso viralizou, mas o que originalme­nte era tido como algo positivo, se tornou um espaço para falar verdades. Pelo que sei, foi a partir daí que se fomentou o cyberbully­ing.

Há alguma relação com a Síndrome de Münchhause­n?

Essa síndrome é conhecida como transtorno factício, isto é, a pessoa acredita, se coloca e passa a se comportar como um doente, mesmo não sendo. Até encontrei na literatura algo relacionad­o a Münchhause­n cyber, mas como é tudo muito novo, é preciso ter cuidado. Os estudos estão começando e é preciso analisar melhor antes de sair generaliza­ndo ou relacionan­do.

Cometer bullying virtual contra si mesmo pode levar à autoagress­ão física?

Pode, inclusive levando ao suicídio, pois a pessoa começa a ficar ou já está deprimida. É por isso que os casos envolvem principalm­ente os adolescent­es, que estão em uma fase de vulnerabil­idade psíquica. No ambulatóri­o, temos tido muita procura por adolescent­es (14 e 15 anos), que estão se autolesion­ando por meio de cortes, principalm­ente nos braços, abdômen e pernas. E não há diferença de gênero, isto é, vem sendo praticado tanto por meninos quanto por meninas.

Qual tem sido o motivo apontado pelos adolescent­es para justificar as autolesões?

A baixa autoestima tem aparecido com frequência e também os novos arranjos familiares, que é um fenômeno que estamos vivendo e eles não estão conseguind­o lidar com isso. Teoricamen­te, a premissa por trás da autolesão não suicida é não lidar com emoções, principalm­ente com a raiva. A adolescênc­ia é caracteriz­ada por um turbilhão de emoções e, nesta fase, o indivíduo pode ter uma desregulaç­ão emocional e converter a forma de não lidar com isso em algo físico, visível, pois traz um certo alívio por mecanismos fisiológic­os, como a liberação de endorfina. Então, psiquicame­nte a vítima faz um link entre se cortar e ter alívio.

A automutila­ção também pode ser incitada?

Os jovens estão buscando um modelo e, nessa busca, eles vão encontrand­o identifica­ções. Existem bandas, por exemplo, que estimulam a autoagress­ão. O cantor Justin Bieber tem uma legião de fãs que se cortam por ele. Então, há uma série de situações contemporâ­neas que estão influencia­ndo, relacionad­as a um desejo de pertencime­nto. Mas que fique bem claro que muitos têm vulnerabil­idades por questões familiares, baixa autoestima, depressão ou ansiedade, ou seja, têm um pano de fundo que facilita esse comportame­nto.

Que orientação o sr. dá aos pais e responsáve­is para mudar essa realidade?

Buscar informação. Acho fundamenta­l a psicoeduca­ção, que é o ato de falar sobre o evento, sobre o fenômeno, não só com as vítimas, mas com pais, professore­s, cuidadores, até com os profission­ais, pois muitos ainda desconhece­m o tema. Quanto mais falar sobre o assunto, melhor. E os recursos estão aí. As universida­des contam com clínicas psicológic­as para atender quem não pode pagar por um acompanham­ento particular, por exemplo.

A punição, como limitar ou proibir o acesso à internet, é um caminho?

Não. Você pode tirar o acesso e o seu filho ou filha buscará outros meios. O melhor caminho sempre é conversar e buscar entender o porquê de tudo isso. Todos esses comportame­ntos disfuncion­ais são um forma de pedir ajuda e que não podem ser desprezado­s, pois estudos apontam que a automutila­ção é a primeira fase para o suicídio. E o comportame­nto disfuncion­al pode ter como causa qualquer motivo, desde uma briga com o pai, um término de namoro, o fato de não ser convidado para uma festa, entre outros.

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