Folha de Londrina

O Diário da Felicidade

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Quando estou triste, abro “O Diário da Felicidade”. É tiro e queda: a alegria de viver volta num instante. A obra-prima do escritor e monge romeno Nicolae Steinhardt (1912-1989), concebida em forma de diário, compõe um vasto panorama intelectua­l do tempo e da eternidade. O título do livro pode parecer estranho, quando se pensa que Steinhardt esteve cinco anos na prisão por razões políticas (1960-1964), foi atormentad­o durante décadas pela Securitate (a temível polícia secreta romena) e o tempo todo perseguido pelo regime comunista. Mas basta a gente ler algumas páginas para descobrir que a obra não poderia ter outro nome. Graças à tradução de meu amigo Elpídio Fonseca, temos a oportunida­de de ler em português esse grande autor de nosso tempo. Digo, sem medo de exagerar, que Steinhardt é um frasista tão bom quanto seu conterrâne­o Emil Cioran. Seguem alguns exemplos extraídos do Diário:

“Qualquer forma de Estado não é possível senão numa sociedade que crê em Deus. Se não, o Estado toma o lugar da divindade e já não pode ser limitado.”

“Existe um ódio irreconcil­iável contra o bem e um terror profundo e desdenhoso diante de que tudo que é belo.”

“Deus criou o mundo inocente, sem o mal. Mas ao homem criou-o livre, ou seja, livre para fazer o mal, para introduzi-lo no mundo. Este é o risco que Deus correu pelo ato da criação. O homem passou da ideia do mal, da possibilid­ade do mal (sabida por Deus como virtualida­de) para a criação do mal. (...) A criatura, durante um segundo, se tornou divina: criou paralelame­nte com a divindade: o mal. Que contaminou o mundo. O que explica porque a única coisa que Jesus levou consigo da terra para o céu foram os estigmas.”

“A sociedade está em condições de se opor a uma medida tirânica ou imoral apenas quando ela mesma é muito moral. Para poder ser liberal exige-se que a sociedade seja primeirame­nte submetida à moral.”

“Outro comunismo? (...) É este, não outro. Vingador. Pequeno. Podre. Grosseiro. Invejoso. Crente na trindade: ódio, suspeita, inveja. Com a boca de regateira e ódio de serviçal. A sociedade do bem-estar, onde a cozinha é um fogareiro Primus no corredor.”

“O provérbio alemão: Deus ajuda o marinheiro em tempo de tempestade, mas o timoneiro tem de estar ao leme; o provérbio inglês: Deus dá as mãos, mas não constrói pontes; o provérbio dinamarquê­s: Deus alimenta os pássaros que mexem as asas; o provérbio tcheco: Aquele a quem Deus descobriu o lugar onde está o tesouro, deve tirá-lo sozinho desse lugar; o provérbio basco: Deus é bom, mas não é tolo. Joana D’Arc: Esforcemo-nos, Deus vai esforçar-se.”

“Caímos, sujou-nos o pecado; pela salvação saímos do charco e nos endireitam­os novamente para a inocência; desta vez, porém, haverá uma inocência merecedora porque aguardará, apavorada, a lembrança do mal e será o afirmar consciente do bem, uma vivência, não um simples estado. Assim se entende por que o homem vai ser considerad­o acima dos anjos.”

Obra-prima do monge romeno Nicolae Steinhardt é um remédio para os meus momentos de tristeza

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Shuttersto­ck por Paulo Briguet

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