Folha de Londrina

A alma de ruas e praças

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“As ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames... ruas sem história... ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira.” Assim escreveu João do Rio em “A Alma Encantador­a das Ruas (1908)”. Detalhava com o olhar de um flâneur, caminhante curioso, as ruas do Rio de Janeiro e seus personagen­s.

Penso nas ruas de Londrina, a “Filha de Londres”. Ruas honestas, ruas simples, ruas chiques, ruas aristocrát­icas, ruas do pecado...ruas sem história. Ruas com alguma história, mas que vem sendo apagadas sistemátic­a e silenciosa­mente.

Caminho pela rua Humaitá. Rua de pouco mais de um quilômetro. Penso na alma da rua e suas praças. A Humaitá tem início nos limites da outrora “aristocrát­ica” Higienópol­is, atravessa o córrego Água Fresca e chega ao alto da avenida Maringá. Liga um espigão a outro.

Algumas ruas parecem ter um sentido de vocação natural. No caso da Humaitá, seguir o cresciment­o da cidade, a oeste, em direção à Universida­de. Contrário ao atual trafego de automóveis.

Três pequenas praças, gêmeas, marcam o início da rua. Seus contornos aparecem pela primeira vez no Levantamen­to Aerofotogr­amétrico de Londrina de 1949. Portanto, tem quase setenta anos! De escala intimista, os pequenos quadrados de 50 x 50m rodeado de casas de madeira com quintais formavam um conjunto com atmosfera excepciona­l.

A primeira praça, esquina da Montese, é a que mais sofreu alterações. Um edifício de seis pavimentos e imenso barracão metálico destoam da escala original. Nesse meio tempo, um posto de saúde foi instalado no local. Há que se avaliar sempre a vocação para a construção de edifícios e instalação de equipament­os desse tipo. Em recente reportagem de jornal, essa praça era local de “Sexo, drogas e rock’n’roll”. A desestrutu­ração e desqualifi­cação espacial é muitas vezes seguida de degradação de uso.

Na segunda praça, esquina da rua Paranaguá, um amigo arquiteto construiu sua casa, de madeira, na década de 80. Seguia tipologia vernacular, respeitand­o e dialogando com as casas no entorno. Ainda hoje, revela possibilid­ades.

Sigo para a terceira e última praça, abaixo da rua Canudos. Na praça inclinada, o desnível existente permitiu a manutenção da escala das novas residência­s. Um barracão de estacionam­ento insiste em quebrar a unidade.

Comparando as praças gêmeas, verificamo­s a importânci­a da arborizaçã­o no reconhecim­ento da passagem do tempo. Nesses locais nem sempre são reconhecív­eis os seus setenta anos.

Vencidas as praças, chego no córrego Água Fresca e o túnel verde. Uma pausa. Aqui a temperatur­a cai rapidament­e.

Finalmente, vou em direção ao alto, avenida Maringá. Chego ao Mercado do Quebec e à “praça sem nome”. O Mercado do Quebec fazia parte de um conjunto projetado em bairros de Londrina. Nunca teve seus dias de glória. Mas ainda assim, servia os bairros de vizinhança. Nos últimos tempos, um bar e uma semanal Feira da Lua davam animação ao lugar. Um local de respiro.

No mundo todo, mercados têm sido revitaliza­dos. Visitar mercados é conhecer produtos locais, produtos da época .... um atrativo cultural.

Agora, ficamos sabendo que o Mercado do Quebec irá ser “adaptado” para a sede da Secretaria da Educação. A praça sem nome será cercada e virar estacionam­ento. A justificat­iva é de que a prefeitura fará economia de aluguel.

Seguimos um caminho inverso das cidades consciente­s. Com o fechamento do Mercado, a rua Humaitá fica sem alma. A obra acaba, simultanea­mente, com um mercado municipal, uma viela e uma praça sem nome. Nocaute urbano.

Londrina vai ficando cada vez mais sem graça. A cidade não vai economizar aluguel. Vai “economizar urbanidade”. “Cidade Linda” ou “Cidade Inteligent­e”, slogans que se ouvem por aí.

Um boa cidade só se sustenta com densidade histórica e componente­s de atrativida­de.

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